Zoom

Sequelas da Covid-19 acarretam longo processo de reabilitação; veja histórias

Entre as complicações, estão problemas cardíacos, respiratórios, musculares e neurológicos. Ex-pacientes falam sobre a recuperação.

Pacientes que foram internados por Covid-19 precisam, muitas vezes, de fisioterapia - Paullo Allmeida/Folha de Pernambuco

A cura não é, sempre, o fim da doença. Ela pode representar a transição para uma progressão de etapas que, enfim, traga de volta o bem-estar e o equilíbrio. Catorze quilos mais magro, depois de passar 30 dias em cima de uma cama no antigo Alfa, rebatizado Hospital de Referência Unidade Boa Viagem, no Recife, o veterinário Alexandre Fiel da Costa, de 63 anos, percebeu que faltava força para os movimentos mais simples. Levantar o braço era uma luta. As “juntas” doíam, a voz saía fraca. E logo teria que reaprender a andar.

Alexandre começou a sentir a chegada da Covid-19 na segunda quinzena de abril. Não teve febre, nem falta de ar, nem perda de olfato. Para ele, o “corona” foi uma grande e chata dor de cabeça. Daquelas enxaquecas que não tem compressa de água morna que resolva. “Era atípica, como eu nunca tive na minha vida”, recorda. “Por isso que eu recorri ao serviço [de saúde], senão tinha ficado em casa. Se fosse uma gripe normal, ia levando com a barriga”. Foi a um centro de triagem. Lá disseram que voltasse para casa. Analgésico não dava conta e, dias depois, o morador da Linha do Tiro, na Zona Norte, procurou a UPA de Nova Descoberta.

Na sala amarela da Unidade de Pronto-Atendimento, o oxímetro não parava de acusar o baixo nível de oxigênio no sangue. Naqueles dias, Pernambuco avançava na curva ascendente de casos e, à espera de um leito em um hospital maior, o veterinário ficou na sala vermelha da UPA por uma semana. Em 3 de maio, deu entrada no Alfa. “Não me lembro nem da ambulância, acho que já saí sedado para lá. Passei 15 dias no respirador. Depois, fui para a enfermaria. E recebi alta em 2 de junho”, conta Alexandre. “[Quando voltei], não conseguia me movimentar. Muitas dores nos joelhos”.



Para restabelecer a mobilidade, ele contratou uma fisioterapeuta particular, que ia em casa duas vezes por semana. Levou 20 dias para andar de novo. “Sentia dores nas articulações. Nos exercícios, alongamentos, tudo doía”, diz. Conseguindo se movimentar por conta própria, concluiu o tratamento no Núcleo de Fisioterapia de Águas Compridas, em Olinda, onde teve alta há um mês. Hoje, ele ainda sente algumas dores, principalmente nos joelhos, mas já voltou a trabalhar.

A rotina de reabilitação se repete entre os sobreviventes da Covid-19. No caso de Alexandre, as sequelas foram causadas pelo longo período que passou internado. Mas nem sempre é assim. Um dos chefes da Emergência do Pronto-Socorro Cardiológico de Pernambuco Prof. Luiz Tavares (Procape), o cardiologista e clínico-geral Humberto Caldas explica que o processo inflamatório provocado pela infecção é capaz de atingir diversos órgãos e sistemas, formando trombos no corpo todo. Por isso, quem tem doenças cardíacas preexistentes é enquadrado no grupo de risco para desenvolver a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG).

“São vários órgãos e sistemas acometidos. Mas essas inflamações deixam alguma sequela, porque a recuperação é uma cicatrização. Então, uma cicatrização de um órgão como o coração, por exemplo, pode deixar o funcionamento dele um pouco prejudicado”, avalia.

Alexandre Fiel contratou fisioterapeuta particular para voltar a andar após sair do hospital (Foto: Arquivo Pessoal)

Entre as complicações causadas pelo Sars-Cov-2, médicos de todo o mundo têm constatado sequelas de diferentes tipos. As mais comuns são as respiratórias e musculares, mas os pacientes também podem apresentar problemas cardíacos, renais e neurológicos.

De acordo com o médico Humberto Caldas, as consequências para o sistema cardiovascular são menos frequentes e, em geral, têm uma reversão mais rápida do que as respiratórias. No entanto, há doentes que sofrem infarto por causa das inflamações e depois precisam de acompanhamento. “Essas sequelas cardíacas e pulmonares, a gente precisa de um tempo para avaliar o que vai ser isso a médio e longo prazos. Até porque, para avaliar a recuperação de um órgão coração, precisa de seis a 12 ou até 24 meses”, observa. “Vimos pacientes que infartaram dentro do contexto da Covid, e o infarto, por si só, gera insuficiência cardíaca”.

Reabilitação
Ao entrar pelas vias do rosto, como boca e nariz, o vírus tende a afetar, primeiro, o sistema respiratório. Já mostramos aqui no Zoom como o agente infeccioso compromete o funcionamento dos pulmões, inflamando e enchendo de líquido as menores partes desse par de órgãos, os alvéolos pulmonares. É daí que vem, muitas vezes, a queda na oxigenação, a falta de ar e a expansão das inflamações pelo sistema vascular. Agora tente imaginar os danos que esse processo pode provocar nos órgãos atingidos. No caso dos pulmões, mesmo depois da cura, a doença pode deixar um rastro de secreção e fragilização, que compromete, ainda, a saúde dos músculos que mantêm o corpo sustentável.

Por isso, é bastante comum que os pacientes sintam cansaço e fadiga quando voltam para casa. É o que constata a fisioterapeuta Camila Matias. Ela é uma das profissionais que atendem no Núcleo de Fisioterapia de Ouro Preto, em Olinda, unidade que faz parte do Programa de Reabilitação Pós-Alta Covid-19 do município. “As queixas mais comuns são essa falta de ar e a limitação de qualquer atividade mais simples, seja tomar banho, andar ou subir uma escada. E tem a evolução da perda de massa muscular, aí qualquer esforcinho maior traz sempre dor global. Mas também pode vir tosse irritativa constante”, explica.

Foi o caso de Sivanildo Soares de Souza, 70. Diabético e ex-fumante, em maio, ele ficou 13 dias internado no Hospital Português, na área central do Recife. “Tive uma gripe leve e fui ao médico, mas constataram que eu tinha a Covid”, lembra. Voltou para casa, mas dois dias depois teve delírios de febre e procurou novamente o hospital, onde teve que ficar para tomar oxigênio. Liberado, ele começou a frequentar a unidade de fisioterapia de Ouro Preto, onde mora, e se dedica com afinco aos exercícios. Comprou uma alça para apoiar nos ombros a bolsa de água, que precisa soprar durante as sessões, e se mostra disciplinado para seguir as orientações da fisioterapeuta. Em poucas semanas, receberá alta. “Agora eu lavo o carro, pinto e não me canso como antes”, comemora.

Silvanildo Soares de Souza, 70, se dedica aos exercícios respiratórios após receber alta (Foto: Paullo Allmeida/Folha de Pernambuco)

Faz quase dois meses que Sivanildo está na reabilitação, um tempo médio para o tratamento dos pacientes que vieram da Covid-19. A fisioterapeuta Camila Matias diz que esse período de recuperação não é fácil de prever. “A gente não tem como especificar que em dez dias todo mundo está recuperado, porque a fase de cicatrização é individual. Se eu não tenho nem hipertensão nem diabetes, fica sendo mais fácil de me recuperar”, afirma.

Por isso, cuidar da saúde do corpo em geral é fundamental. “A gente faz uma reabilitação global mesmo. Todo exercício que for fazer, de sentar e levantar, caminhar, abrir os braços, com peso ou sem, melhora a respiração. É uma sincronia. O pulmão vai estar aberto, e eu diminuo os distúrbios respiratórios. Mas, independentemente disso, a estratégia é que a fisioterapia possa promover a melhoria da aptidão física”, destaca.

Uma rotina que logo será encarada pela jornalista e apresentadora Eliana Victório. Aos 58 anos, ela saiu do hospital em 19 de agosto após passar 13 dias internada. Os primeiros sintomas foram percebidos enquanto voltava de um fim de semana em Gravatá. Primeiro uma tosse seca, depois febre, moleza, ânsia de vômito. Sem melhora, foi com uma amiga a uma emergência, de onde seguiu para o quarto do internamento.

“Nos primeiros dias no hospital, tive só febre à noite, a tosse foi embora, perdi o olfato, o paladar e o apetite. Só não tive falta de ar. Fiquei na expectativa [de sair]”, conta. A médica então mandou esperar até o 10º dia para dar alta. Foi quando a infecção atacou com mais força. “Não consegui sair da cama e, por volta das 5h, já estava com 39 graus de febre. Fiquei assim quinta, sexta e sábado. A febre não baixava e minha pressão subiu muito, e eu comecei a me desesperar”, recorda.

No domingo, o vírus finalmente cedeu. Eliana pôde voltar para casa e agora espera se fortalecer para fazer os exames e entrar na fisioterapia. Como Sivanildo logo após a alta, ela se cansa com muita facilidade e se movimenta devagar para manter o fôlego. Também sente dores nas pernas e dificuldade de mover os braços. “Estou no meu décimo dia depois da alta e digo que estou melhor do que ontem, mas continuo com uma inflamação no pulmão e estou tomando corticoide. Eu sempre fui uma pessoa muito ativa, e de repente você se vê presa”, relata. “Procuro caminhar no apartamento, brinco com a minha cachorrinha. Mas é um processo de muita paciência, você tem que ter tranquilidade”.

Jornalista e apresentadora Eliana Victório, 58, ao sair do hospital após 13 dias de internamento (Foto: Arquivo Pessoal)

Dos nervos ao cérebro
Após quase seis meses de pandemia em Pernambuco - oito, se considerar o contexto mundial -, já se tem mais clareza sobre como a doença se manifesta em órgãos como o coração, os pulmões e os rins. Mas hoje, passado o susto inicial da explosão de casos, o principal foco de dúvidas da medicina diz respeito às consequências para o sistema nervoso, que coordena o comportamento, as funções vitais, os reflexos e os movimentos. No mundo, há relatos de pacientes que, mesmo após a infecção, tiveram dores intensas de cabeça (cefaleia), epilepsia, complicações de acidente vascular encefálico (AVE) e, em situações mais raras, síndrome de Guillain-Barré. Isso fora a perda do olfato e do paladar, sintoma bastante frequente.

O impacto do novo coronavírus no sistema nervoso é muito incerto. No Recife, dois estudos para entender esses efeitos estão sendo realizados em hospitais públicos e privados. Um deles é coordenado pela neurologista Lúcia Brito, dos hospitais Português e da Restauração. “É uma turma de aprendizagem”, define a médica que acompanha a evolução da doença desde que chegou. “[Queremos saber] o que acontece ou pode acontecer na fase aguda ou, mais posteriormente, o que pode ser registrado de complicação neurológica. Isso ainda é muito desconhecido. É preciso observar no curto, no médio e no longo prazo”, pondera.

Recuperação da Covid-19 pode levar meses (Foto: Paullo Allmeida/Folha de Pernambuco)

Ainda de acordo com ela, essas sequelas podem vir tanto do processo de inflamação pulmonar, que se espalha em outros sistemas, como de uma ação direta do vírus. “Muitos pacientes têm perda da olfação e do paladar, e isso é acometimento do nervo periférico, que pode levar ao sistema nervoso central”, esclarece a médica. “E pode ser a própria resposta do indivíduo. Nesse sentido, não temos muitos detalhes”. A pesquisa de Brito segue três linhas de trabalho. “Uma no hospital público, que é avaliar os pacientes que tiveram a infecção e comprometimento do sistema nervoso. A outra é que são os pacientes com quadro neurológico aguda e que vão para a emergência. E no particular, estamos tendo acesso a todos os registros desde que começou a pandemia”, detalha.

O outro estudo é realizado no Hospital das Clínicas, Oswaldo Cruz, Imip e Português, onde estão sendo avaliados cerca de 400 pacientes. Segundo o médico e professor de Neurologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Pedro Augusto Sampaio, uma das sequelas registradas é a dor de cabeça constante até meses após o fim da infecção. “É infrequente, mas pode ocorrer”, salienta. “O que a gente tem visto são alguns casos de AVC e de confusão mental durante a doença. Aqueles que tiverem sequelas devem ser acompanhados. Mas a pesquisa ainda está em andamento, então não podemos dizer o percentual disso”.