notícias

Ex-funcionária denuncia omissão do Facebook sobre impacto de perfis falsos em eleições

Cientista de dados cita Brasil em relatório com falhas da empresa em processos eleitorais no mundo todo

Facebook - Marcello Casal Jr/ Agência Brasil

Uma cientista de dados fez uma série de acusações contra o Facebook, onde trabalhava, apontando que a empresa de Mark Zuckerberg ignorou ou demorou a agir diante de evidências de que processos eleitorais em vários países estavam sendo influenciados por perfis falsos.

Em um relatório que teve trechos divulgados pelo site Buzzfeed News, Sophie Zhang cita vários exemplos de como contas falsas, robôs e campanhas coordenadas foram utilizados na maior rede social do mundo para interferir em resultados políticos.

"Nos três anos que passei no Facebook, descobri várias tentativas flagrantes de governos estrangeiros de abusar de nossa plataforma em grande escala para enganar seus próprios cidadãos", afirma a ex-funcionária.

O Brasil está entre os mencionados no documento. Segundo Zhang, ela e seus colegas removeram 10,5 milhões de reações falsas e perfis de seguidores de políticos de destaque no Brasil e nos Estados Unidos nas eleições de 2018.

Naquele ano, os americanos escolheram congressistas, e o Brasil elegeu o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A cientista afirma que as operações de influência e manipulação na rede envolveram "políticos importantes de todas as convicções no Brasil".

Embora o Facebook tenha criado uma "sala de guerra" com o objetivo declarado de identificar essas operações nas eleições de 2018, Zhang diz que nem todos os detalhes chegaram ao conhecimento público.

Segundo ela, os anúncios regulares que a empresa faz acerca de remoções de contas e publicações com conteúdo falso ou manipulado são seletivos e incompletos.

Além de Brasil e EUA, países como Índia, Espanha, Bolívia, Equador, Ucrânia, Honduras e Azerbaijão também tiveram problemas apontados por Zhang.

Na Índia, ela conta que trabalhou para remover "uma rede politicamente sofisticada de mais de mil atores trabalhando para influenciar" eleições no início do ano, em Déli. No ano passado, reportagem da Folha de S.Paulo explicou como "guerreiros digitais" ajudaram o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, a ganhar as eleições.

Na Espanha, Zhang ajudou a remover 672 mil contas falsas criadas para propagar conteúdo favorável ao Ministério da Saúde em meio à crise causada pelo coronavírus no país, que à época registrava alguns dos piores índices de contaminação e mortes pela Covid-19.

A ex-funcionária de Zuckerberg relata que, apesar de não ocupar um alto cargo na hierarquia do Facebook, tinha bastante autonomia para investigar atividades suspeitas na rede em diversos países.

"Eu tomei decisões que afetaram presidentes nacionais sem supervisão, e adotei medidas contra tantos políticos proeminentes em todo o mundo que perdi a conta", diz.

Segundo a reportagem do Buzzfeed News, entretanto, algumas dessas decisões afetaram a saúde de Zhang e hoje a fazem carregar dúvidas sobre sua possível culpa nos eventos ocorridos nos países sob investigação.

A cientista de dados conta que, na Bolívia, identificou "atividades inautênticas" –termo técnico utilizado pela equipe do Facebook para se referir ao uso de múltiplas contas falsas com o objetivo de disseminar conteúdo ou aumentar interações na rede– em apoio a um candidato presidencial da oposição em 2019.

Segundo ela, o Facebook prioriza os EUA e a Europa e, por isso, ela não tomou nenhuma atitude contra a situação na Bolívia. Meses depois, a política boliviana entrou em uma turbulência que levou o presidente Evo Morales a renunciar e gerou uma onda de protestos que provocou dezenas de mortes.

Situação semelhante ocorreu no Equador, onde, de acordo com Zhang, também houve atividades inautênticas de apoio ao governo que ela decidiu não priorizar. Agora, recém-demitida do Facebook, ela se pergunta sobre os efeitos de sua omissão na resposta do governo equatoriano –considerada ineficiente– à pandemia de coronavírus.

"Tomei inúmeras decisões nesse sentido –do Iraque à Indonésia, da Itália a El Salvador", conta Zhang em seu relatório. "Embora eu tenha tomado a melhor decisão que pude com base no conhecimento disponível na época, no final fui eu que tomei a decisão de não forçar mais ou priorizar mais cada caso, e eu sei que tenho sangue nas mãos agora."

No início de setembro, o Facebook anunciou que vai suspender a publicação de anúncios políticos na semana que antecede as eleições nos EUA. A medida faz parte de um plano de ações da empresa que, segundo Zuckerberg, tem como objetivo a redução de riscos de desinformação e de interferência eleitoral.

Segundo Zhang, porém, a rede se preocupa mais com questões que possam prejudicar sua imagem pública do que com problemas do mundo real. A ex-funcionária conta que participou de uma reunião em que foi informada que qualquer denúncia publicada pelos jornais americanos New York Times e Washington Post deveria ser priorizada.

Quando pediu que o Facebook aumentasse os esforços para impedir interferências em eleições e atividades políticas, a resposta da empresa, segundo Zhang, foi que "os recursos humanos são limitados" e que os serviços da cientista de dados não seriam mais necessários se ela se recusasse a parar de se concentrar na análise de possíveis manipulações de viés político.

Demitida, ela diz que se ofereceu para trabalhar como voluntária até o fim das eleições americanas, mas a oferta foi recusada. Ainda assim, incentivou que seus colegas permaneçam na empresa para "consertá-la por dentro".

"Mas vocês não vão nem deveriam precisar fazer isso sozinhos", diz Zhang. "Encontrem outras pessoas que compartilham de suas convicções e valores para trabalhar nisso juntos. O Facebook é um projeto muito grande para uma única pessoa consertar."