Sars-CoV-2 pode atacar células cerebrais em humanos e camundongos
Sars-CoV-2 pode adentrar células do sistema nervoso, os neurônios, e causar derrames, sangramentos e até delírios e alucinações, diz pesquisa
Além de infectar células dos pulmões, coração e rins e deixar sequelas nesses órgãos, o Sars-CoV-2 pode também adentrar células do sistema nervoso, os neurônios, e causar derrames, sangramentos e até delírios e alucinações. Essas são as descobertas feitas por cientistas da Universidade de Yale e publicadas no último dia 8 na forma de pré-print (ainda sem revisão de pares), no repositório biorXiv .
Já haviam sido relatados, em casos de Covid-19, sintomas neurológicos, alguns moderados, como dor de cabeça, perda de olfato e paladar, e até mesmo mais severos, como perda da consciência, delírios, meningite viral e encefalopatia -uma complicação cerebral rara. Alguns dos sintomas, no entanto, eram associados ao quadro infeccioso severo causado pelo coronavírus no organismo, o que poderia resultar em sequelas cerebrais.
O novo estudo tinha por objetivo entender como o vírus invade as células nervosas e os potenciais riscos dessa invasão para o cérebro. Os pesquisadores fizeram três experimentos com o vírus, usando organoides de cérebros humanos -modelos in vitro de um conjunto de células a fim de simular o órgão verdadeiro- inoculados com o vírus; camundongos contaminados; e o cérebro de pacientes que morreram de Covid-19.
No primeiro grupo, foram utilizadas células-tronco pluripotentes para formar células progenitoras da região frontal do cérebro humano. Essas células foram, então, infectadas com o vírus. Após 12 horas, já era possível encontrar o vírus nas células primárias. Os cientistas criaram, então, um modelo tridimensional do cérebro a partir dessas células, a fim de avaliar também como o Sars-CoV-2 atacava as células adjacentes.
Passadas 24 horas da infecção, os cientistas já puderam observar a presença do vírus nas células organoides, mas o pico de carga viral ocorreu após 96 horas. Um ponto importante desse experimento foi observar uma maior concentração de partículas virais em áreas simulando o córtex cerebral -o córtex corresponde à massa cinzenta do cérebro, isto é, os corpos celulares dos neurônios, onde está todo o maquinário celular responsável pelas atividades neurais mais sofisticadas.
A maior densidade de células infectadas também estava correlacionada a um aumento da morte celular de células adjacentes, sugerindo que a invasão dos neurônios pelo Sars-CoV-2 pode estar ligada a eventos como isquemias -bloqueio da irrigação sanguínea-, derrames e corte de oxigênio a essas células.
A principal porta de entrada do Sars-CoV-2 no organismo é a enzima conversora de angiotensina 2 (ECA2), muito presente nas células dos pulmões e do coração, mas também encontrada na parede do intestino. Estudos contrários à hipótese da invasão do cérebro pelo vírus argumentaram justamente que há baixa quantidade dessa enzima nas células do sistema nervoso central.
No entanto, a hipótese dos pesquisadores de Yale foi de que a presença dessa proteína na membrana celular estaria ligada à invasão do vírus. De fato, a análise patológica do cérebro de um paciente que morreu de Covid-19 apontou uma elevada presença dessa proteína nos neurônios. Frente à invasão do coronavírus no organismo, o corpo responde com uma resposta imune que, em um primeiro momento, pode ser medida pela taxa de produção de anticorpos.
Uma das questões levantadas pelos cientistas era se no cérebro existe alguma resposta imune para barrar a entrada do vírus. Eles não encontraram evidências de combate ao vírus pelo sistema imunológico no órgão.
Para fins de comparação, no caso do vírus da zika, a entrada do patógeno leva a uma resposta imune intensificada no cérebro, detectada pela presença elevada de células de defesa, em uma tentativa de destruir as células contaminadas e deter o vírus. Situação semelhante também é observada em outras infecções virais cerebrais, como raiva e herpes. Com o Sars-CoV-2, no entanto, as células não são destruídas, pois o sistema imune não consegue identificá-las: elas se portam como células normais, mas provocam a morte das células adjacentes por falta de oxigênio. Assim, é possível que o Sars-CoV-2 use o maquinário das células nervosas para se replicar e, sem destruí-las, se espalhar pelo cérebro.
Os pesquisadores foram mais a fundo para entender as consequências da invasão dos neurônios pelo vírus, avaliando o cérebro de camundongos contaminados.
Para observar o caminho de entrada do Sars-CoV-2 no cérebro, os cientistas inocularam o vírus em camundongos por duas vias, intranasal e intraventricular, e viram que os camundongos infectados pelo nariz apresentaram mais sintomas pulmonares, sem alta taxa de mortalidade, enquanto os que receberam o vírus pela via intraventricular tiveram letalidade mais elevada.
Além disso, analisaram mudanças significativas no sistema vascular dos animais, com a reorientação do fluxo sanguíneo nos vasos da região do córtex a fim de atingir as áreas com maior atividade metabólica, relacionadas ao ataque do vírus. Isso pode dar uma pista de como ocorrem os eventos isquêmicos no cérebro dos pacientes contaminados.
Por fim, analisando o cérebro de pacientes que morreram de Covid-19, os pesquisadores observaram uma maior presença do vírus na região do córtex. No entanto, foi na região branca, e não no córtex, onde encontraram maior quantidade de eventos microscópicos de derrames.
Analisando lâminas com o tecido cerebral em laboratório, foram encontrados anticorpos específicos para a proteína S (de "spike", espícula) do Sars-CoV-2 nessas regiões do córtex, reforçando que os sintomas neurológicos associados à Covid-19 podem estar relacionados à invasão direta dos neurônios pelo vírus, que pode causar morte das c tanto em cérebros humanos quanto em organoides.
O estudo, no entanto, é experimental, e contou com apenas três modelos humanos. Estudos futuros são necessários para examinar qual a frequência da invasão do Sars-CoV-2 nos neurônios cerebrais e se existem pré-condições para tal.
Os autores concluem que "o estudo fornece uma demonstração clara de que os neurônios podem se tornar um alvo da infecção por Sars-CoV-2 com consequências devastadoras de isquemia localizada no cérebro e morte celular, destacando ainda a ligação do vírus ao sistema nervoso".
Segundo os pesquisadores, o estudo pode ajudar a "guiar estratégias de tratamento de pacientes com distúrbios neurológicos."