Primeiro país europeu atingido pelo coronavírus, Itália mantém repique sob controle
Pouco antes, o aeroporto Fiumicino, em Roma, foi considerado o melhor do mundo em prevenção de contágios do Covid-19
Nem os próprios italianos parecem acreditar, mas o país, o primeiro europeu atingido pelo coronavírus, aquele em que hospitais colapsaram em março, diante de tantos doentes, e onde aconteceu a primeira quarentena nacional do mundo, está conseguindo, até agora, manter o repique de contágios sob controle.
Na quinta-feira passada (24), o ECDC (agência europeia de controle de doenças) classificou a Itália como um país de baixo risco de infecção. Um dia depois, a OMS (Organização Mundial da Saúde) elogiou a condução da crise pelos italianos, com "uma série de medidas baseadas na ciência".
Pouco antes, o aeroporto Fiumicino, em Roma, foi considerado o melhor do mundo em prevenção de contágios do Covid-19.
A situação chama a atenção, dentro e fora do país, principalmente quando é feita a comparação dos números com os de outros europeus severamente afetados pela epidemia.
Nos últimos 14 dias, segundo dados do ECDC, a Itália registrou 38 novos casos para cada 100 mil habitantes, ante 306 na Espanha, 232 na França e 107 no Reino Unido. No período, a média diária de novos contágios é de 1.600 na Itália, 5.100 no Reino Unido, 10,2 mil na Espanha e 11,1 mil na França.
Diante desse quadro, surge a dúvida: afinal, por que a Itália está conseguindo controlar melhor a subida de casos do que seus vizinhos?
Segundo especialistas italianos, há uma série de hipóteses e nenhuma resposta única.
"Muito difícil fazer essa comparação porque são fatores dificilmente mensuráveis. Mas se pode dizer que, na Itália, houve muita cautela em relação à reabertura das atividades depois do lockdown. Aqui, foi mais gradual do que na Espanha e França, e isso pode ter ajudado", afirmou à reportagem Patrizio Pezzotti, diretor de Epidemiologia, Modelos Matemáticos e Bioestatística do Instituto Superior de Saúde, o órgão técnico-científico do serviço sanitário italiano.
Na Itália, a retomada das atividades que haviam sido suspensas na quarentena compulsória de dois meses foi organizada, a partir do início de maio, em espaços de uma semana, para que o sistema de monitoramento conseguisse medir o impacto de cada decisão –primeiro, foi a reabertura de indústrias e escritórios, depois lojas, depois restaurantes, depois cinemas etc.
Isso, segundo especialistas, permitiu que os protocolos de segurança de cada segmento pudessem ser preparados e compreendidos, evitando que a curva de novos casos voltasse a subir.
Na semana passada, houve um exemplo de como a reabertura tem sido feita baseada em pareceres técnicos. Enquanto as ligas de futebol pressionavam pela ampliação da capacidade de público nos estádios, fazendo subir de mil lugares ocupados para 25%, o comitê científico que ampara as decisões do governo disse que seria algo arriscado de fazer agora, o que foi acatado.
Foi durante as férias de verão que a taxa de contágio voltou a subir no continente. Aqui, novamente, outra diferença, a favor da Itália.
"Na Espanha e na França houve troca de população com outros países mais forte do que aqui. Por motivo de turismo, trabalho ou mesmo quem tem dupla cidadania, muitas pessoas de regiões com altas taxas de contágio, como a América do Sul, entraram. Eles ficaram mais expostos a casos importados", diz Pezzotti.
Mas, mesmo na Itália, o auge do verão, em agosto, fez acender o alerta amarelo nas autoridades sanitárias. Foram registradas cenas de aglomeração nas praias e de festas em lugares fechados. A paradisíaca ilha da Sardenha virou um dos epicentros de contágios, principalmente entre jovens. Os casos nacionalmente voltaram a subir.
Nessa fase, entrou em cena outro quesito em que o país tem se saído relativamente bem: a capacidade de identificar e rastrear os casos. São cerca de 60 mil testes diagnósticos (exclui os de controle, repetidos para dar alta a um paciente positivo, por exemplo) realizados por dia atualmente, o dobro do que estava sendo feito em junho e julho.
Em tese, quando um caso é identificado, o serviço sanitário busca rastrear os últimos contatos para que também sejam submetidos ao teste. A cada pessoa contaminada, em média, é necessário contactar entre 10 e 20 outras.
Isso ajuda, então, a combater um dos lados mais difíceis dessa epidemia: conter a circulação de infectados assintomáticos. Hoje, na Itália, há 51,2 mil pessoas infectadas, sendo que 48 mil cumprem isolamento domiciliar -outros 3.000 estão internadas com sintomas e 280 em UTI.
Nos últimos dias, o serviço de rastreamento descobriu que 14 funcionários do clube de futebol Gênova, da Série A, estão contaminados, depois que um dos jogadores foi infectado, provavelmente durante uma viagem de lazer. Nesta quarta-feira (30), o time todo entrou em quarentena.
Outra particularidade italiana é a ampla aceitação às medidas de distanciamento social e ao uso das máscaras.
Segundo pesquisa do instituto britânico YouGov, a Itália, entre os países citados nesta reportagem, foi o primeiro a ter adesão às máscaras em lugares públicos acima de 60% da população, ainda em março.
No fim de abril, o percentual era de 89% entre italianos, ante 66% entre espanhóis, 47% entre franceses e só 13% no Reino Unido. Atualmente, os três primeiros têm percentuais acima de 80%.
"É tudo um pouco estranho! Somos um país muito indisciplinado no respeito às regras. De algum modo, entrou na cabeça dos italianos que o uso da máscara pode ajudar a reduzir riscos", afirma Pezzotti.
"Estou convencido de que o impacto do que a Itália viveu em fevereiro e março ainda está na cabeça das pessoas. Todo o impacto midiático, o lockdown, a atenção internacional, isso assustou muito. Acho que é um elemento importante que está fazendo as pessoas respeitarem mais as regras", diz o pesquisador.
Na opinião dele, a imagem mais forte daquele período, o auge da epidemia no país, é a dos caminhões que carregavam dezenas de caixões de Bérgamo, uma das cidades mais afetadas do país. Por falta de espaço nos cemitérios e crematórios, os corpos de vítimas do Covid-19 precisaram ser transportados, no dia 18 de março, para outras cidades. "É impressionante e inesquecível."
Isso ajuda a entender, por exemplo, por que muitos italianos em Milão, onde o uso de máscaras não é mais obrigatório ao ar livre, continuam fazendo isso. Ou quando negociantes de lojas pequenas pedem para clientes esperarem do lado de fora –na calçada, correndo o risco de que desistam da compra–, enquanto terminam outro atendimento.
Ao elencar as possíveis explicações para o desempenho italiano no combate à segunda onda de contágios, Pezzotti frisa que são "hipóteses, considerações". "Não existem dados sólidos do ponto de vista da ciência que permitam explicar por que na Itália é de um jeito e nos outros países é de outro."
Além do mais, os dados são fotografias do momento e duas semanas bastam para fazer o cenário passar de "sob controle" a "descontrolado". "Não precisamos de muito para que a Itália venha a se encontrar na mesma situação de Espanha e França. Em 15 dias podemos passar de 2.000 casos por dia a 10 mil."
A chegada do outono, a subida de contaminações em regiões do centro e do sul do país, até então as mais poupadas, e a reabertura das escolas, iniciada há 15 dias, podem levar a uma rápida evolução negativa.
"O aumento lento de casos, como está acontecendo, era previsto. Claramente a situação vai se complicando, mas fica difícil fazer projeção, porque a difusão depende muito do comportamento individual e isso é difícil de inserir num modelo de previsão", explica.
É por isso que médicos e governantes fazem coro na necessidade de cada um continuar atento. "Apesar da avaliação do ECDC de que a Itália é um país de baixo risco, temos que manter os pés no chão e continuar a investir na prudência. Os próximos meses não serão fáceis", afirmou o ministro da Saúde, Roberto Speranza.