Pandemia do novo coronavírus silencia o Centro do Recife
Nas vias históricas da Cidade, é possível perceber o esvaziamento como um dos efeitos do novo coronavírus
Não faz muito tempo, quem andasse pelo Bairro do Recife precisava prestar atenção para não esbarrar em alguém. Nas alamedas da avenida Rio Branco e da rua da Moeda, trabalhadores e turistas escolhiam entre caminhar em linha reta ou ziguezagueando de uma a outra calçada para almoçar, tomar café ou admirar a arquitetura dos séculos passados.
Hoje, seis meses após a chegada de uma pandemia que infectou mais de 35 mil recifenses, a zona histórica e turística da Capital pernambucana é dominada, na maior parte das horas, pelo silêncio. Para garantir uma volta sustentável da vizinhança que traz o DNA e o coração da Cidade, atores da sociedade civil e do setor produtivo defendem um planejamento por meio do diálogo amplo com o poder público.
A Prefeitura do Recife destaca o incentivo a projetos imobiliários no entorno do Porto do Recife e de valorização de imóveis de valor artístico e cultural. Ao também apoiar as empresas que pretendem se instalar ou investir em empreeendimentos na região, a gestão tem atuado como porta de entrada e articulação com as entidades, fornecendo informações estratégicas para encontrar as melhores condições e local para o sucesso dos negócios.
Nesse panorama, um ponto crucial, na opinião de líderes e especialistas ouvidos pela Folha Mais, é atrair novos moradores ao Centro. Quarta vizinhança com menos moradores e a terceira menor em densidade demográfica entre os 93 bairros do Recife, o “Antigo” é rodeado por outras duas localidades pouco habitadas: São José e Santo Antônio, que, perto de Santo Amaro e Boa Vista, têm potencial para crescer e impulsionar economicamente a área.
Presidente do Movimento Pró-Pernambuco e da Associação das Empresas do Mercado Imobiliário de Pernambuco (Ademi-PE), Avelar Loureiro Filho é taxativo.
“A solução para você revitalizar o Centro do Recife é trazer pessoas para morar”, avalia. “Há prédios históricos, mas há muitos que são antigos, ou seja, já passaram do período de vida útil, são das décadas de 50, 60 e 70 e hoje já não servem mais para as habitações como a gente concebe atualmente, seja para as classes altas, médias ou baixas. Teria que se fazer um grande pacto com os setores construtivo e comercial, movimentos sociais, governos municipal e federal, já que há áreas da Marinha, do Exército e de outras autarquias”.
Na avaliação de Loureiro Filho, o Bairro do Recife, por abranger um território pequeno, não absorve apenas a demanda de quem mora lá e precisa ser alimentado pela movimentação das localidades vizinhas.
“Tem que ter uma densidade populacional residente e permanente em Santo Antônio, São José, até no Cabanga. O turista preenche um pedaço, o Porto Digital, um outro pedaço, mas você tem que ter vida de dia e de noite. Uma cidade que é boa para o turista é aquela que é boa para o morador. Então você não pode segregar as pessoas que moram do lugar do turismo. Se não pensarmos de forma integrada, dificilmente vamos resolver”, afirma.
Habitação e expansão
Estimular a habitação no Centro expandido é uma das ideias defendidas por Pierre Lucena, presidente do Porto Digital, parque tecnológico que ocupa boa parte do bairro histórico.
“Queremos fazer um projeto de moradia em Santo Antônio para que as pessoas que trabalham no Bairro do Recife morarem lá. As pessoas não estão mais dispostas a pegar duas horas de ônibus por dia. Então, partimos para outras modelagens”, argumenta. No entanto, para que a proposta saia do papel, segundo Lucena, seria necessário investir na infraestrutura de toda a região central. “O nosso projeto para o bairro de Santo Antônio é urbano, o que queremos é arrumar a rua, como foi feito no Bairro do Recife”, explica.
A iniciativa conta com o apoio do diretor executivo da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL Recife) e presidente do Sindicato dos Lojistas do Comércio de Bens e Serviços do Recife (Sindilojas), Fred Leal.
“A expansão do Porto Digital para a Guararapes e o entorno vai dar muito mais vida tanto ao Bairro do Recife quanto ao comércio da Ilha de Antônio Vaz [formada por São José e Santo Antônio]”, comenta. Embora não tenha números, ele diz que, durante a pandemia, “muitos” comerciários tiveram que fechar seus pontos de venda física, o que ajuda a intensificar o esvaziamento da área. “É uma coisa visível”, descreve. “Apresentamos projetos aos prefeituráveis de zeladoria, limpeza urbana, redução de impostos que podem recuperar o Centro”.
Além da requalificação urbana, os bairros que se situam ao redor do Recife Antigo têm uma estrutura com potencial para a habitação social, como atesta a professora de Geografia Urbana Edvânia Torres, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
“Do cais de Santo Antônio à ponte Duarte Coelho, você vê prédios esvaziados. Então tem que se pensar numa proposta social de ocupação daqueles espaços. É possível. Será que a gente não poderia colocar habitação para estudantes, já que lá é bem servido de transportes? Os bairros mais bem dotados de infraestrutura de saneamento estão ali e são justamente os menos ocupados”, argumenta.
Calmaria
A pandemia deixou o vazio. A exceção ao silêncio ocorre nas manhãs de domingo, quando grupos de ciclistas se reúnem no entorno do Marco Zero. Se, de um lado, as aglomerações nos dias de folga trazem apreensão pela Covid-19, de outro, o baixo movimento durante a semana é fator de preocupação em um bairro de DNA comercial que precisará de estímulos para se reerguer.
Desde que o marido se sentiu impedido de trabalhar por motivo de saúde, Teresa Júlia Soares, de 62 anos, assumiu o fiteiro que o casal mantém há quase cinco décadas na Marquês de Olinda. Do banco onde se senta à espera dos clientes, a comerciante assiste à mudança de contexto.
“Era um movimento de gente para lá e para cá. Agora é triste de ver. Antes ficavam três pessoas aqui e não davam conta. Hoje eu fico só e tem dia que até cochilo”, conta. “Eu tinha um funcionário, que era bem direitinho, com carteira de assinada e tudo, mas, graças a Deus, ele pediu para sair porque senão não ia ter condições de pagar mais”.
O que ainda salva a renda, segundo ela, são as filas da agência da Caixa para os saques do auxílio emergencial. “O que a gente perdeu de mercadoria, para um negócio desse tamanho, não é brincadeira. Só para se ter uma ideia, eu vendia 140 salgadinhos (em um dia). Hoje eu peço 70 e sobra”, diz.
De acordo com o presidente da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes Seccional Pernambuco (Abrasel-PE), André Araújo, o esvaziamento se explica, em parte, pela adoção do trabalho remoto, processo que já era visto como tendência de mercado em diversos setores e, com a pandemia, se intensificou abruptamente.
Outros fatores que contribuem para isso são o crescimento dos serviços de delivery e o próprio reflexo da crise econômica. “Conversando com os empresários do setor, a gente percebe que, pelo menos, 30% das atividades do Grande Recife não poderão voltar por uma série de dificuldades”, informa. “E o Bairro do Recife sofre duplamente porque muitos dos que trabalhavam ali estão em sistema de home office”.
Enquanto o movimento não volta, os negócios que resistem na ilha vão se adaptando. Gerente de uma padaria na rua da Moeda, Verônica Luzia de Oliveira viu o público minguar durante a quarentena. Se antes o estabelecimento atendia até 400 pessoas por dia, hoje são 100. Para driblar a crise, o jeito foi investir em novas formas de comunicação.
“Nós podíamos abrir [no começo da pandemia] porque prestamos um serviço essencial, porém não tinha ninguém no bairro, ia ser mais prejuízo. A partir de julho, colocamos uma bicicleta para falar que a padaria estava aberta, com um espaço amplo, agradável”, relata.
Ela também credita a perda de movimento ao trabalho remoto adotado pelas empresas do entorno. “Era movimentado. Não tem residências, mas tinha os escritórios, os bares. Muitos entregaram seus pontos”, recorda.
Pesam nisso as mudanças no setor de tecnologia, que pôde transferir com mais facilidade os processos para o trabalho em casa. No Porto Digital, onde trabalham cerca de 11.600 pessoas, das 339 empresas que compõem o parque tecnológico hoje em dia, pouco menos da metade continua funcionando longe das sedes físicas. O presidente da instituição, Pierre Lucena, espera compensar essa ausência com o crescimento do polo previsto para os próximos anos.
“Estamos fazendo um estudo mais aprofundado de como as empresas funcionarão no futuro. O mais provável é que seja um ambiente híbrido, em que a pessoa vai duas ou três vezes por semana ao trabalho. Isso reduziria mais ou menos para a metade o número de gente circulando na área do Porto Digital. Mas lá [no Bairro do Recife] há um conjunto de serviços que ainda não voltaram, o que dá uma ideia de esvaziamento. Lógico que há uma preocupação, mas como estamos crescendo em um ritmo acelerado, vai acabar compensando”, explica.
De acordo com Lucena, a meta é que o número de empresas atuantes no polo dobre até 2025.
Prefeitura destaca ações e planos para o Bairro do Recife
Por meio de nota, a Prefeitura do Recife informou que apoiará as empresas que pretendem se instalar ou investir na expansão de seus empreendimentos na Cidade, atuando como porta de entrada, ajudando na articulação do diálogo com outras entidades e fornecendo informações estratégicas sobre as melhores condições e locais de acesso para o sucesso dos negócios.
Entre as iniciativas do município que, de acordo com o poder público municipal, podem beneficiar a região central da Capital, está o projeto Moinho Recife, que abrigará um centro corporativo para receber empresas, lojas e serviços nas proximidades do Terminal de Passageiros do Porto do Recife.
A ação prevê, ainda, um complexo com hotel, apartamentos residenciais e estacionamento. A previsão é que a primeira etapa da obra seja entregue no segundo semestro de 2022.
Além disso, o texto destaca um projeto de valorização de imóveis em caráter histórico e de valor artístico, cultural e paisagístico. A medida inclui redução ou isenção do IPTU e da Taxa de Limpeza Pública para proprietários desse tipo de imóvel no bairro.
Também há outro projeto, segundo a Prefeitura, de arrecadação de imóveis abandonados, que regulariza o pagamento de tributos e destinação social sob pena de perda da propriedade. O imóvel fica à disposição para ações futuras.
A nota também menciona as obras feitas na localidade nos últimos anos. Entre elas, o boulevard da avenida Rio Branco, que, em 2017, fechou a via para a circulação de pedestres e ciclistas, e a rua da Moeda, que, no ano passado, se tornou exclusiva para quem se desloca a pé e recebeu fiação embutida, adquirindo um maior espaço de convivência nos bares e restaurantes no local.
Por fim, o texto cita a parceria que o Executivo municipal fez, no começo da pandemia, com instituições e empresas como LeFil, Softex, Porto Digital e Cesar para capacitação de empreendedores para atuação no ambiente virtual. Como resultado da ação, foi criado o site Sabores do Antigo, com informações sobre os bares e restaurantes da área.