Entrevista

Brasil deveria discutir legalização da maconha baseada em evidências, diz epidemiologista

Ela também afirma que a teoria de que a maconha pode ser uma porta de entrada para outras drogas tem que ser revista

Silvia S. Martins, professora da Universidade Columbia - Reprodução

Argumento frequente contra a legalização da maconha, o aumento do uso entre adolescentes não se concretizou em estados americanos que passaram a permitir a venda da substância, diz a epidemiologista brasileira Silvia Saboia Martins, professora da Universidade Columbia, que estuda o tema usando dados do Levantamento Nacional sobre Uso de Drogas e Saúde dos EUA.

"Existem algumas pessoas que lançam a hipótese de que, por conta da legalização, os pais podem estar mais vigilantes", afirma a pesquisadora, que cita outra pesquisa segundo a qual a percepção sobre os riscos de usar a cânabis aumentou entre adolescentes mais novos.
 

Ela também afirma que a teoria de que a maconha pode ser uma porta de entrada para outras drogas tem que ser revista.

Para a epidemiologista, o Brasil deveria discutir uma legalização responsável e baseada em evidências da cânabis.

PERGUNTA - Estudos apontam que não houve aumento do uso de maconha por adolescentes nos estados americanos em que houve legalização. Por que?
SILVIA SABOIA MARTINS - A legalização nos Estados Unidos começou pela maconha medicinal. Existem exceções de indicações para crianças e adolescentes com epilepsia, mas é voltada para o público maior de 21 anos. Ao mesmo tempo, investiu-se em prevenção e tratamento.

Ninguém está falando 'vamos legalizar para adolescentes usarem'. Não são só os dados de estudos da minha equipe que mostram isso, outros estudos epidemiológicos coletados em escolas, da Monitoring the Future, da Youth Risk Behavior Survey, também mostram que não houve aumento na prevalência de uso entre adolescentes.

Algumas pessoas lançam a hipótese de que, por causa da legalização, os pais podem estar mais vigilantes, presentes. Também existe um estudo do Monitoring the Future que mostra que, entre adolescentes mais novos, de 14 ou 15 anos, aumentou a percepção do risco do uso de maconha.

Por outro lado, há pesquisadores que levantam a hipótese de que sempre vai existir um subgrupo pequeno de adolescentes para os quais a maconha já não seria uma novidade, então eles pensam 'vou procurar algo diferente que me dê um barato, em vez de algo que meus pais estão usando para tratar ansiedade'.

P - A maior disponibilidade, com a legalização, poderia levar mais adolescentes a usar maconha?
Com a legalização medicinal eu acho que não. Com a legalização para uso recreativo, acho que ainda é muito cedo para a gente saber se de fato aumentou o acesso.

Que programa de prevenção de uso de drogas para adolescentes funciona melhor?
SM - Existem vários programas de prevenção de comportamentos de risco, não só de uso de drogas, implementados na escola. Os que funcionam são aqueles feitos o mais cedo possível, não no sentido de amedrontar, e sim de informar sobre os riscos e benefícios.

O recomendado por especialistas é começar já no Ensino Fundamental e, de maneira geral, colocar à disposição da criança e do jovem alternativas, como a participação em esportes, atividades artísticas.

Há estudos focando a participação dos pais, ensiná-los acerca dos riscos de uso em adolescentes, do risco de intoxicação em crianças pequenas. O melhor é a prevenção global, focar também o socioemocional da criança e do adolescente, e a colocar a par dos riscos e benefícios. Explicar que, se ela vier a usar, e isso vale para álcool e tabaco e outras drogas, é melhor que comece na idade adulta e não na adolescência.

P. - Novos tipos de drogas, como canabinoides e outras drogas sintéticas, são preocupantes?
SM - A cânabis sintética é mais perigosa. São produtos químicos que não são seguros, afetam o cérebro muito mais que do a maconha e podem levar a risco de vida. Podem ter efeitos adversos como náusea, vômitos, dificuldade de respiração, taquicardia, inclusive sintomas psicóticos e ideação suicida.

Os estudos mais recentes aqui nos EUA mostram que houve aumento de uso no início da última década, mas que tem diminuído. Em 2011, dados do Monitoring the Future mostravam que quase 12% dos adolescentes entrevistados em escolas tinham usado algum tipo de canabinoide sintético. Isso diminuiu para 5% em 2015. O uso é mais comum entre adolescentes de nível socioeconômico mais alto.

P. - E os chamados sais de banho [catinonas sintéticas, que são estimulantes], tem aumentado o uso deles entre adolescentes?
SM - Também são drogas sintéticas com um risco muito maior de efeitos adversos se comparados à maconha. Normalmente quem usa são adultos jovens, em festas tipo rave. Ainda é um número pequeno. Mas são drogas que trazem um risco, podem levar a pessoa ao pronto-socorro.

P. - Os EUA têm visto o avanço do fentanil e outros opioides sintéticos. Eles estão substituindo a heroína?
SM - Por enquanto não. O que se viu nas overdoses por opioides foi um aumento da presença de fentanil e de carfentanil, mas só em algumas regiões dos EUA e por um período curto. Há muito a combinação do fentanil com a metanfetamina, com outros estimulantes, com benzodiazepínicos e com álcool.

O que a gente tem visto principalmente na região oeste dos EUA é o aumento do uso de metanfetamina.

Não é tão comum entre adolescentes, é mais em adultos, sobretudo nas regiões onde começou a epidemia de opioides, com desemprego, nível educacional baixo, como Virgínia Ocidental, Appalachia [cadeia montanhosa que corta longitudionalmente o leste dos EUA], Ohio, Kentucky, algumas áreas da Flórida.

Agora a grande preocupação é pela crise socioeconômica causada pela Covid-19. Fala-se em uma sindemia, o encontro de três crises: a crise da pandemia, a crise socioeconômica e a crise de overdoses de opioides, que nem seriam só de opioides mas de polissubstâncias.

P. - A sra. mencionou os benzodiazepínicos, uma classe de drogas bem antiga. Os que as pessoas estão usando agora são os mesmos de décadas atrás?
SM - São os mesmos: Valium, Rivotril. Alguns com pequenas mudanças, mas são drogas prescritas que são usadas para fins não médicos. Quando bem indicados, em dose baixa, ajudam a tratar a ansiedade, mas têm risco grande de abuso e dependência.

P. - Seus estudos também apontam um aumento no uso de maconha por mulheres adultas após a legalização. Por quê?
SM - Minha hipótese é que, com a legalização, grande parte das mulheres estaria utilizando como automedicação para sintomas depressivos ou ansiosos. Muita gente sente que relaxa usando a maconha.

É importante frisar que, apesar desse aumento significativo entre as mulheres, a prevalência entre os homens ainda é mais alta, como com a maioria das outras substâncias. Entre mulheres de 21 a 30 anos, antes da legalização para uso recreativo, 7% diziam que usavam, e aumentou para quase 12% depois da legalização. Entre os homens era quase 14% e aumentou para 18%.

Imagino que muito seja por automedicação e aceitação de que, agora é legalizada, deixa eu experimentar para ver se me ajuda a lidar principalmente com sintomas psicológicos e também com a dor, dor aguda e dor crônica.

P. - O que acha do argumento de que a maconha poderia servir como porta de entrada para outras drogas?
SM - Controverso. O fato de uma droga ser legalizada para adultos não vai necessariamente resultar em aumento de uso entre adolescentes. É uma teoria que tem que ser revista.

A porta de entrada é sempre a substância mais disponível no mercado. Hoje em dia são tabaco e álcool, que a legislação vigente não consegue evitar que as crianças usem. Se a legalização vai levar a maconha a ser essa porta vai depender muito da maneira como ela é implementada.

Outro ponto a considerar é que a grande maioria das pessoas que usam uma substância não vai ter problemas. Muitos vão utilizar álcool, maconha ou tabaco sem experimentar outras drogas. Tudo depende do perfil de risco e aversão do adolescente e do quanto de conhecimento ele tem sobre os potenciais riscos.

P. - Gostaria de acrescentar algo?
SM - A gente precisa discutir a legalização responsável no Brasil, baseada em evidências, sempre levantando essa bandeira de que quando se fala em legalização responsável, não é legalizar para adolescentes, é legalizar para adultos. Existem maneiras de isso ser implementado.

P. - A sra. acha que tem clima político no Brasil para isso?
SM - Não no momento atual. Acho praticamente impossível.

SILVIA S. MARTINS, 46
Professora associada e diretora da divisão de uso de substâncias do departamento de epidemiologia da Mailman School of Public Health da Universidade Columbia, em Nova York (EUA), é formada em medicina pela Universidade Federal do Paraná, com residência em psiquiatria e doutorado pela Universidade de São Paulo. Estuda os efeitos da legalização da maconha para fins medicinais e recreativos nos EUA e no Uruguai e o uso de opioides nos EUA, entre outros temas.