Gravidez com amparo e consciência é o desafio para algumas mulheres
Diante de uma sociedade que responsabiliza exclusivamente a mulher pela gestação e isenta o papel do homem nas responsabilidades, especialistas ressaltam a importância da informação para o planejamento reprodutivo
O recente caso de um bebê encontrado em uma lixeira, no município do Cabo de Santo Agostinho, Região Metropolitana do Recife (RMR), levantou o debate sobre planejamento reprodutivo e os caminhos de uma gravidez. Imediatamente, o senso comum culpabiliza a mulher por um suposto abandono do recém-nascido, isentando o homem de toda e qualquer responsabilidade. Discurso esse que está encharcado de valores conservadores provenientes da cultura patriarcal na qual ainda estamos inseridos, que insiste em reservar à mulher a maternidade e atividades domésticas e contemplar o homem com todo o resto do mundo.
Para o doutor em Saúde Pública pela Fiocruz Jorge Lyra, é preciso dar um passo atrás e envolver diferentes instituições e atores sociais no debate. “Não no tom acusatório ou de denúncia, mas sim no campo da informação”, afirma Lyra, que coordena o Núcleo de Pesquisas Gênero e Masculinidades da Universidade Federal de Pernambuco (Gema/UFPE). Ele ressalta a importância da educação sexual nas escolas como estratégia de planejamento. “Não significa incentivar a fazer sexo. Muito pelo contrário. É você conseguir conhecer seu próprio corpo e saber o que quer fazer com ele, para tomar decisões mais conscientes”, explica.
Ainda de acordo com Jorge Lyra, ao ter uma maior consciência do funcionamento do próprio corpo, questões envolvidas no campo da sexualidade também terão o efeito protetivo de situações de abuso e exploração sexual. “Isto é política pública dos anos 1990. Existe documento do Ministério da Educação que fala sobre prevenção, autocuidado, gravidez. Essa discussão é tema de educação sexual e, nos últimos 30 anos, se tornou necessária para conscientizar no espaço da escola. Porém, cada vez mais esse movimento fundamentalista e conservador que temos visto fica impedindo que isso aconteça”, comenta.
Por outro lado, se engana quem pensa que o Brasil não tem diretrizes bem fundamentadas de assistência às gestantes, como explica a enfermeira e uma das coordenadoras do Grupo Curumim, Paula Viana. “Tanto o movimento feminista quanto sanitarista, que ajudaram a implementar o SUS durante a década de 1990, fez com que o Brasil tivesse uma política pública de saúde relacionada a saúde sexual e reprodutiva muito avançada. Temos um repertório baseado em evidências científicas e experiências de outros lugares que não deixa a desejar a nenhum país desenvolvido”, afirma.
No entanto, boa parte dessas normas que poderiam dar uma situação mais segura e confortável às gestantes ficam apenas no papel. “Existe um vazio muito grande nas políticas públicas no Brasil que é o vazio da informação confiável, desprovida de julgamentos morais e de influência religiosa”, avalia Paula Viana. Para mudar essa realidade o poder público, seja no nível federal, estadual ou municipal, deve garantir a capacitação permanente dos profissionais para que possam atender à diversidade de demandas da população. Além disso, eles precisam ter uma supervisão permanente dos organismos para cumprirem o que é exigido da função.
Rede de assistência
No SUS é de responsabilidade dos municípios a assistência às gestantes. No caso do Recife, a rede é formada pela Atenção Básica à Saúde, que funciona como a porta de entrada dessas mulheres, com atendimentos em mais de 140 unidades de saúde da Capital, e pela Média e Alta complexidade, que inclui quatro maternidades municipais (Barros Lima, em Casa Amarela, Arnaldo Marques, no Ibura, Bandeira Filho, em Afogados, e Hospital da Mulher, no Curado). De acordo com a Secretaria de Saúde (Sesau) da Cidade, caso a mulher ainda não tenha confirmado a gravidez, é oferecido o teste rápido em todas as unidades da Atenção Básica.
Com a gravidez confirmada, a gestante deve procurar a unidade de saúde mais próxima de sua residência para iniciar o pré-natal, que é feito por médicos e enfermeiros. Para as grávidas que moram em áreas que não são cobertas pela Estratégia de Saúde da Família, a orientação é procurar a unidade de referência mais perto de casa. Após todo o acompanhamento do pré-natal, a grávida é encaminhada para realizar o parto na maternidade mais próxima. Já se durante o pré-natal for descoberto qualquer tipo de alteração na gestação, a mulher será encaminhada para o pré-natal de alto risco.
Na Atenção Básica, as gestantes são acompanhadas e acolhidas por equipes multiprofissionais dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), que incluem psicólogos, que atuam de forma integrada com as equipes de Saúde da Família. Em casos que requeiram uma maior atenção, a grávida pode ser encaminhada para um dos 17 Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do município para que seja feita uma avaliação mais completa, inclusive com médico psiquiatra, se necessário.
Mas até chegar à essa rede de assistência, as mulheres passam por variadas e diferentes experiências. Quando descobriu que estava grávida, Jéssica Lira, 25 anos, inicialmente não ficou apreensiva com a notícia, pois acreditava que receberia total apoio da família. No entanto, ela foi surpreendida com o contrário. “Não planejado nem sempre significa não desejado, mas no meu caso foi o que aconteceu. E a reação de pessoas importantes para mim refletiu na rejeição que acabei criando à gestação. Não senti prazer em estar grávida”, confessa, acrescentando que aborto ou adoção nunca esteve em seus planos.
De acordo com Jéssica, ao longo da gravidez o clima foi melhorando. Ela conta que após o susto a mãe foi uma das primeiras a pedir desculpas e passou a dar todo apoio. Jéssica afirma ainda que o namorado, o personal trainer Almir Oliveira, 28, sempre esteve ao seu lado, acompanhando-a nas consultas do pré-natal. “Eu assumi o risco quando não me preveni então tinha que arcar com as consequências. Mas costumo dizer que minha filha não atrapalhou a minha vida. Eu que não me planejei direito. Hoje vejo que ser mãe é a melhor coisa do mundo. É um amor que não se explica”, conta, se referindo à pequena Eduarda Thuanny, 6 meses.
Adoção
Muitos não sabem, mas caso a gestante deseje, antes ou logo após nascimento, entregar a criança ao sistema de adoção, por lei a equipe de saúde que está acompanhando a gravidez deve encaminhá-la às Varas da Infância. Mas ela também pode procurar diretamente o Poder Judiciário da cidade onde mora. No Estado, existe o Programa Acolher e no Recife o Programa Mãe Legal, ambos criados pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE). Nos projetos, as mulheres recebem apoio jurídico e psicológico, já os bebês entram no cadastro nacional de adoção para que sejam acolhidos por outra família.
De acordo com o coordenador do Programa Acolher, Paulo Teixeira, a iniciativa tem uma perspectiva preventiva no sentido de evitar situações de abandono e adoções ilegais. “Nesse sentido também evitamos o tráfico de seres humanos e de órgãos. A gente atua ainda na perspectiva positiva de possibilitar que a criança cresça e se desenvolva dentro de uma família que a deseje. Assim, evitamos abandonos afetivos”, explica. Os motivos que levam as gestantes a colocarem os filhos para adoção são diversos, desde mulheres vítimas de violência a casos de erros no método contraceptivo.
Da mesma forma, não há um perfil definido das gestantes que recorrem ao Acolher. “Há gestantes pobres, ricas, mais velhas, jovens, mães de primeira viagem ou que já têm outros filhos”, comenta o coordenador. No entanto, a maioria dos casos são de grávidas que procuram o Poder Judiciário sozinhas sem a presença dos pais da criança. Dos 127 casos atendidos no Programa desde a sua criação, em 2011, apenas 30% terminaram com os recém-nascidos encaminhados para adoção, 70% ficaram na família natural ou extensa, ou seja, parentes como tios, avós. Em caso de dúvidas, é possível entrar em contato com a ouvidoria da Secretaria da Mulher de Pernambuco, através do número 0800 281 8187. A ligação é gratuita.
Responsabilidade masculina
Deve-se lembrar que a concepção de uma criança é fruto da relação entre duas pessoas e, naturalmente, deveria caber igualmente a ambas a busca por métodos contraceptivos e o diálogo sobre as decisões acerca da gestação e do bebê. Mas na prática não é o que ocorre. É preciso, então, pensar a participação dos homens desde o momento do planejamento reprodutivo, segundo a coordenadora do Instituto Papai, Mariana Azevedo. “É muito comum a sociedade apontar a mulher como única responsável pela gravidez indesejada, mas os homens são igualmente responsáveis pela prevenção, pelo uso dos métodos conceptivos”, diz Azevedo.
O coordenador do Gema/UFPE, Jorge Lyra, ressalta que antes mesmo da gravidez os homens se isentam de seus deveres. “Quando a gente questiona se realmente somos os pais estamos simbolicamente abortando pela boca, pois deixamos de assumir a nossa corresponsabilidade na situação”, afirma. Lyra chama atenção para os mecanismos sociais que acabam perpetuando pensamentos conservadores. “Temos dois métodos contraceptivos voltados para o corpo masculino e mais de 20 para o feminino. É como se estivéssemos dizendo que a vida reprodutiva é uma tarefa somente da mulher”, compara o doutor em Saúde Pública.
A coordenadora do Instituto Papai chama atenção para a necessidade políticas públicas que debatam o assunto nas escolas, universidades, empresas e instituições. “Precisamos repensar esses valores tradicionais de gênero que acabam afastando os homens do debate sobre planejamento reprodutivo”, comenta Mariana Azevedo. Ela acrescenta que os homens devem reavaliar seus papéis na sociedade, como já fazem as mulheres há décadas. “Esse lugar conservador, machista, patriarcal tem que ser revisto. As mulheres saíram da casa e foram para o mercado de trabalho, para a política, mas os homens não se voltaram da mesma maneira às relações de cuidado e da vida reprodutiva”, explica.