SPFW institui cota racial obrigatória para desfiles em decisão histórica
Diversidade nas passarelas e revistas resgatam termo ‘bame’, criado nos anos 1960 para designar minorias
Os pedidos de parte da indústria da moda e da própria audiência para que a passarela da São Paulo Fashion Week represente em equidade de raça a população brasileira surtiu efeito.
Se até o ano passado o evento recomendava às marcas que pelo menos 20% da seleção de modelos fosse afrodescendente, indígena ou asiática, a organização agora passou a exigir que as grifes passem a ter pelo menos 50% de seu casting formado por "negros, afrodescendentes e (ou) indígenas".
Essa regra está expressa no documento enviado às marcas participantes da semana de moda, que terá a sua edição comemorativa de 25 anos celebrada de forma virtual, com desfiles, filmes e peças audiovisuais exibidos num canal do YouTube e em projeções espalhadas pela capital paulista.
A versão do texto ao qual a reportagem teve acesso afirma que "serão considerados modelos afrodescendentes aqueles com ascendente por consanguinidade até o segundo grau", e, na parte mais sensível, que "caso a grife não atenda essa determinação, a mesma não fará mais parte do line-up". Ou seja, quem descumprir as regras já estaria fora da programação de abril do próximo ano.
Com a decisão, é possível que a SPFW, já nesta temporada, passe a ser a primeira semana de moda do mundo a ter um código racial próprio para as marcas participantes.
Na noite desta quinta-feira (29), em entrevista, o diretor do evento, Paulo Borges, afirmou que as discussões começaram a tomar corpo após o mês de maio, quando o debate sobre as restrições práticas impostas pela pandemia se voltaram para as questões humanas.
O mês marcou o início da onda de protestos nos Estados Unidos pela morte do segurança George Floyd, asfixiado por um policial branco, e, logo depois, na moda, uma avalanche de denúncias sobre casos de racismo nos bastidores da indústria.
"Não posso fazer leis, mas dentro do ambiente que fomentamos é possível haver regras, sim. Nas conversas que tivemos [sobre mudanças no evento], uma das coisas que prometi de partida era que não era mais possível recomendar coisas. Quando se fala em equidade racial, isso foi entendido por todo mundo", afirma Borges.
Ele diz que nos próximos dias uma lista de questões será debatida com as pessoas que participam direta e indiretamente da indústria para sugerir mudanças estruturais.
A diretora de novos projetos da São Paulo Fashion Week e braço direito de Borges, Graça Cabral, afirma que o "letramento da parte racializada" é o primeiro passo de uma mudança maior para a redação de "uma carta de compromisso" para a proporcionalidade de raça também nos bastidores.
Isso tem a ver com as críticas da comunidade negra e indígena sobre a falta de profissionais desses segmentos em cargos à sombra dos holofotes, como fotógrafos, stylists e equipes de imagem.
"Não estamos aqui para julgar ninguém. Esses são processos colaborativos e não queremos forçar mudanças. Mas é claro que as marcas que não queiram compartilhar dessas discussões sairão do calendário por elas mesmas. Chegamos no ponto de deixar de criar frases e passamos a partir para a ação", resume Borges.
Segundo ele, nenhuma marca desistiu de participar da São Paulo Fashion Week por causa da nova exigência. Porém, não é possível mensurar o impacto da decisão, porque devido à crise instalada na indústria por causa da pandemia e pelo formato virtual da semana de moda, muitas marcas do calendário passado não estão na programação, a exemplo de Ellus, Cavalera e Bobstore.
Do ponto de vista prático, a nova regra chega em momento fácil de ser aplicada, já que pelo formato enxuto e editado em estética de videoclipe das apresentações, muitos desfiles terão no máximo quatro modelos revezando as criações dos estilistas.
Em tese, não poderia mais ser usado como justificativa o discurso, aventado no passado recente como desculpa para o branqueamento excessivo da passarela, de que não haveria modelos negros disponíveis na seleções das agências.
Profissionais da indústria afirmam que as agências de São Paulo estão oferecendo às marcas uma ampla seleção de modelos afrodescendentes.
A falta de representatividade racial na passarela das semanas de moda do país é histórica e foi fruto de um debate acalorado em junho, quando profissionais dos bastidores e modelos negros foram a público nas redes sociais denunciar maus tratos e desdém por parte das grifes nos testes pré-desfile.
O assunto que já motivou a assinatura de um TAC, ou Termo de Ajustamento de Conduta, entre o evento e o Ministério Público, em 2009, após uma série de reportagens do jornal Folha de S.Paulo apontar a falta de modelos negros nas passarelas do evento, voltou à ribalta após a modelo Thayná Santos postar em sua conta no Instagram os meandros dessas seleções.
Ao lado das modelos Camila Simões, Natasha Soares e Cindy Reis, ela criou o coletivo Pretos na Moda, que por meio de conversas com o setor e postagens em uma conta homônima no Instagram chama a moda para a discussão racial.
Numa live com o próprio Paulo Borges, em junho, Soares desabafou sobre o racismo sistêmico da moda. "Existe muito a questão do 'você é lindo, mas em silêncio'. A gente é chamado para administrar crises. Quando uma marca faz algo racista, ela contrata um negro", disse.
Na sequência, uma outra conta, o Moda Racista, surgiu nas redes sociais apontando supostos casos de racismo impetrados por nomes importantes da indústria, como Reinaldo Lourenço, Gloria Coelho, Ellus e Ratier. Dessas marcas, só Gloria Coelho participará desta edição comemorativa, e já histórica, da São Paulo Fashion Week.