Coronavírus pautará agenda econômica no pós-eleição nos EUA
A disputa com a pandemia pela atenção e pela preocupação de analistas e governantes provavelmente surgirá independentemente do vencedor
Uma vitória apertada de Joe Biden contra Donald Trump como a que se desenha disputará com o coronavírus o posto de fator externo que mais influenciará o rumo da economia nos próximos anos.
Mesmo que a vitória do democrata se confirme com uma folga maior, a disputa com a pandemia pela atenção e pela preocupação de analistas e governantes, provavelmente, surgirá.
O recente início da segunda onda da Covid-19 na Europa tem aumentado o receio em relação ao risco de efeitos negativos mais duradouros da pandemia para a economia de países ricos e emergentes, como o Brasil.
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Mas esse cenário poderia ser amenizado pelo impacto do forte estímulo fiscal prometido por Biden, que falou durante a campanha eleitoral numa injeção de US$ 2 trilhões (R$ 10,7 trilhões) na economia via investimentos em infraestrutura e energia limpa e subsídios para inovação.
Parte desse programa seria financiada, segundo os planos do democrata, por aumento de impostos e reversão de cortes de tributos promovidos nos últimos anos por Trump. Ainda que representassem um potencial problema fiscal a médio prazo, as medidas dariam forte impulso à maior economia do mundo, com reflexos positivos para o resto do mundo, via comércio exterior e até investimentos.
Apesar da indefinição na contagem dos votos, tudo indica que os democratas não tiveram forte desempenho na eleição para o Congresso.
Os resultados apurados até a tarde desta sexta-feira (6) indicavam que o partido de Joe Biden conservará sua maioria na Câmara dos Representantes, mas dificilmente tirará dos republicanos a vantagem que eles têm no Senado.
Em uma análise para clientes, Cailin Birch, economista global da Economist Intelligence Unit, ressaltou que, em um eventual governo democrata, a derrota no Senado "complicará a realização de políticas em 2021 e 2022".
Segundo análise da consultoria britânica, isso pode ajudar a explicar a reação favorável do mercado financeiro à possibilidade de uma vitória apertada de Biden. "Não era necessariamente claro que Wall Street aprovaria uma vitória de Biden", diz um trecho de avaliação feita nesta sexta pela EIU.
Segundo a consultoria, Trump favoreceu o mundo dos negócios, com redução generosa de impostos e uma agenda de desregulamentação, que aumentou a rentabilidade das empresas, especialmente no setor de energia. Biden promete desfazer boa parte dessas mudanças. "Esses fatores teriam amenizado o entusiasmo dos mercados por uma administração Biden, não fosse pelo fato de que suas reformas mais ambiciosas provavelmente serão bloqueadas pelo controle continuado do Senado pelos republicanos", ressalta a EIU.
A hipótese de que uma vitória apertada de Biden limitaria o escopo de sua agenda também foi prevista em um relatório recente do banco UBS, que apresentou diferentes projeções para a economia global de acordo com distintos cenários tanto quanto para as eleições americanas e para o desenvolvimento da crise sanitária causada pelo coronavírus.
A instituição espera que, por causa da pandemia, o PIB (Produto Interno Bruto) global sofra uma contração de 3,8% em 2020.
Segundo os economistas do UBS, se os democratas tivessem uma vitória acachapante, a recessão mundial deste ano seria seguida por um crescimento de 6,2% em 2021, embalado pelo estímulo fiscal prometido por Biden.
Uma vitória apertada do democrata e a provável derrota de seu partido no Senado devem levar, no entanto, a uma recuperação mais fraca no próximo ano, com expansão de 5,3%, prevê o UBS. Esse cenário é próximo ao previsto pelo banco suíço caso Trump vença (alta de 5,1% do PIB).
Embora os candidatos tenham apresentado propostas bem diferentes, os economistas dizem que, a retomada seria limitada com Trump por causa da provável escalada das tensões no comércio global. Com Biden mais fraco do que o esperado, o caminho para o estímulo fiscal que ele prometeu se torna mais difícil. O resultado é um efeito econômico semelhante no curto prazo sob os dois cenários.
Mesmo em relação ao comércio global, uma vitória de Biden talvez não alivie tanto o estresse criado nos últimos anos por Trump com a China.
Segundo especialistas, o democrata poderá adotar uma postura menos conflituosa na disputa comercial, mas tende a manter posição dura com o país asiático em relação a temas como meio ambiente e direitos humanos.
Em conversa com jornalistas nesta quarta-feira (4), Joe Lieber, diretor da consultoria Eurasia Group para os EUA, afirmou que, se vencer, Biden deverá sofrer pressões da ala à esquerda do Partido Democrata, mais protecionista, para manter postura anti-China.
Nesse contexto, a pandemia poderá acabar importando muito mais para o destino da economia global do que a troca na Casa Branca.
O UBS prevê que, se uma vacina não for aprovada até o fim deste ano, com possibilidade de ser distribuída em larga escala no início de 2021, as perspectivas econômicas continuarão difíceis para países ricos e em desenvolvimento.
Nesse cenário, medidas de isolamento social continuariam freando o consumo e as incertezas adiariam por mais tempo novos investimentos, limitando o crescimento da economia global em 2021 a 4,8%.
No exercício que prevê um desenvolvimento oposto para a crise sanitária, com a aprovação de uma vacina efetiva no curto prazo, a expansão do PIB mundial poderá chegar a 6,1% no próximo ano.
Segundo Fabio Ramos, economista do UBS no Brasil, o banco também havia traçado cenários diferentes para o Brasil segundo as possibilidades variadas de resultado do pleito presidencial norte-americano e de progresso na busca de uma vacina contra o coronavírus.
Mas ele ressalta que "o potencial negativo se as coisas degringolarem por causa da pandemia é muito maior do que um possível efeito positivo da eleição norte-americana".
O cenário neutro do banco, sem considerar nenhum desses fatores externos, é de um crescimento da economia brasileira próximo a 3% em 2021. Esse resultado subiria para 3,5% na hipótese de ampla vitória democrata. Mas caso o impacto negativo da pandemia no mundo se estenda por mais tempo, a expectativa do UBS é de uma expansão bem menor no Brasil, de apenas 1,8% no ano que vem.
Ainda que uma vitória apertada de Biden não gere crescimento muito diferente do esperado no caso de continuação de Trump na presidência nos próximos dois anos, analistas ressaltam que um governo democrata tende a trazer mais benefícios para a economia global no longo prazo.
O economista Octavio de Barros, sócio-diretor da Quantum4, empresa da área de inovação, acredita que um governo Biden poderá levar a um arrefecimento das tensões geopolíticas que haviam aumentado nos últimos anos e fortalecer novamente uma agenda de multilateralismo. O governo de Trump foi marcado por uma postura de maior isolamento dos EUA.
Barros, que foi economista-chefe do Bradesco, afirma que uma vitória democrata também poderá ter impacto sobre desenvolvimentos políticos em outros países.
"É possível que se inicie um processo de desmonte gradual das democracias iliberais e que se observe um movimento em cascata de perda de prestígio de governos autoritários, sobretudo nos países ocidentais", disse o economista.