'Não é momento de festa', diz novo presidente do Peru ao tomar posse
Com protestos nas ruas, Merino de Lama assume após impeachment de Vizcarra
Numa cerimônia rápida e restrita por conta da pandemia do coronavírus, Manuel Merino de Lama, 59, tomou posse como presidente do Peru às 10h45 (12h45 em Brasília) desta terça-feira (10).
"Vivemos uma crise inegável, que fez com que entrássemos numa fase de enfrentamento constante entre nós. Minha tarefa é atuar com responsabilidade e maturidade pela unidade e pela solução dos nossos problemas econômicos e sanitários, principalmente", afirmou, diante de parte dos congressistas e ministros, além de seus familiares.
O novo presidente disse que ainda que o país "vive um momento muito difícil e este aqui não é um momento de festa".
O Peru é o país da América do Sul mais atingido pela pandemia do coronavírus em termos proporcionais -são 27.871 casos por milhão de habitantes. O Brasil, por exemplo, tem 26.650 casos por milhão.
E, pela projeção do FMI (Fundo Monetário Internacional), deve registrar a maior queda do PIB neste 2020: -14%.
Merino de Lama referiu-se brevemente ao impeachment de Martín Vizcarra, aprovado no Congresso na noite anterior. "Não foram votos comprados os que afastaram o ex-presidente. Estamos respeitando a institucionalidade e os ritos de sucessão da Constituição."
Logo após a votação, houve protestos contra o afastamento diante do Congresso. Durante a cerimônia de posse, a região foi cercada pela polícia, e os enfrentamentos entre manifestantes e as forças de segurança, que usaram gás lacrimogêneo, aconteceram no centro de Lima.
Citando as eleições marcadas para 11 de abril, o novo presidente afirmou que a data será mantida e que tem "respeito ao processo eleitoral em marcha".
Pela legislação peruana, Merino de Lama fica no cargo até a posso do novo eleito, em julho de 2021.
Vizcarra foi afastado por "incapacidade moral" no segundo processo envolvendo corrupção aberto contra ele em dois meses -a primeira moção de vacância havia sido negada pelos congressistas.
Desta vez, as projeções indicavam ainda menos chance de que ela que ela fosse aceita. Mas aconteceu.
"Vizcarra foi muito soberbo e agressivo em sua defesa [na manhã de segunda, 9, antes da votação]. Ao afirmar que mais de 70% do Congresso era corrupto e que as acusações contra ele não deveriam, por isso, ser levadas a julgamento político, ele praticamente humilhou os congressistas", diz à Folha o analista político Alberto Vergara.
"Nós sabemos que há um grupo minoritário hoje no Congresso que sempre quis sua saída, e eles estavam firmes. Mas a defesa de Vizcarra acabou empurrando aqueles que estavam na dúvida a votarem contra ele. O clima foi crescendo dentro da própria sessão", explica.
Com isso, Merino de Lama será o terceiro presidente do atual mandato –que começou com a eleição de Pedro Pablo Kuczynski, em 2016, por uma diferença apertada.
PPK, como é conhecido, enfrentou férrea oposição de um Congresso de maioria fujimorista, do partido Força Popular, liderado por Keiko Fujimori, filha do ditador Alberto Fujimori (1990-2000).
Depois de provocarem o afastamento de vários ministros e do primeiro-ministro de PPK, os fujimoristas pediram seu impeachment duas vezes. Na primeira vez, o presidente negociou com parte do fujimorismo, oferecendo um indulto para Alberto Fujimori, que acabou revertido pela Justiça.
Na segunda vez, PPK renunciou, deixando o posto para seu vice-presidente, Vizcarra, em março de 2018.
Os problemas com os congressistas continuaram com a nova gestão, e Vizcarra destituiu o Congresso em setembro de 2019, seguindo os ritos previstos nas legislação peruana. A nova Casa foi eleita em janeiro para atuar até julho próximo.
Na nova eleição, os fujimoristas diminuíram sua participação, de 36% para 7%, mas se aliaram a outras forças de oposição ao atual governo. Nenhum partido conseguiu mais de 10% dos votos, o que causou um clima de fricção constante.
"Está claro que um Congresso com essa característica temporária, com partidos fragmentados e sem poder, constituído por políticos corruptos, acabaria não tendo compromisso com a institucionalidade. Estes parlamentares buscam projeção e livrar-se de processos", diz o acadêmico de Harvard Steven Levitsky, especialista em Peru.
O agora ex-presidente é alvo de duas investigações da Procuradoria do país. Uma diz respeito a um suposto favorecimento, por meio de contratos públicos, a um músico e amigo de Vizcarra, Richard Swing.
A outra está relacionada a desvio de verbas destinadas a obras públicas no período em que Vizcarra foi governador do estado de Moquegua, entre 2011 e 2014. No total, ele teria recebido de empresários da construção cerca de US$ 640 mil (R$ 3,4 milhões).
Vizcarra não estava presente na posse desta terça-feira. Na noite anterior, depois de seu afastamento, comentou: "Estou indo para casa, com a consciência tranquila, a história e o povo peruano julgarão as decisões que tomei".
O ex-presidente havia chegado a uma popularidade quase inédita no Peru, de 80%. "Este é um país muito antiautoridade, isso explica porque os presidentes tenham que governar com cifras de aprovação muito baixas", diz o jornalista Gustavo Gorriti.
A aprovação de Vizcarra se manteve no início da pandemia porque ele agiu rápido contra o coronavírus, impondo uma dura quarentena e fechando o país. Mas, com um sistema nacional de saúde fraco e com mais de 70% dos trabalhadores em situação informal, sua estratégia fracassou.
A quarentena não foi respeitada e, por mais que o governo tenha aumentado a oferta de camas de UTI de 276 para mais de 1.200 durante o período, não bastou para conter o estrago do vírus.
O alto número de mortos e a grave crise econômica derrubaram a popularidade de Vizcarra para 17%, segundo o mais recente levantamento do Ipsos.
A grande instabilidade política em que o Peru se encontra começou com os escândalos da Odebrecht. A empreiteira brasileira teria pago US$ 29 milhões (R$ 157 milhões) em subornos e caixa-dois a políticos da situação e da oposição, segundo declarado ao Departamento de Justiça dos EUA.
Os escândalos envolveram os governos da maioria dos ex-presidentes vivos do país.
"A instabilidade política não tem a ver com nosso sistema de governo. Mas sim com o fato de que todos estão com medo desde que estourou o caso Odebrecht, então ficam apontando uns aos outros", diz Vergara, referindo-se ao semiparlamentarismo que permite esses julgamentos rápidos, entre outros recursos.
"Nós tivemos governos anteriores, como o de Toledo, que governou até o fim do mandato com 5% de popularidade, e com esse mesmo sistema político. Não creio que o problema seja o sistema. E sim que começaram a prender alguns e isso gera um clima de mútua acusação constante, o que provoca essas dissoluções do Congresso, impeachments de ministros, de presidentes", diz.