Gloria Groove e Alexia Twister ensinam aspirantes a drag a enfrentar a noite
"Nasce uma Rainha" se desprende do formato de disputa americano e adota um tom mais motivacional
Não dá para dizer que o público brasileiro de TV e streaming seja virgem quando o assunto é drag queen. É só dar uma olhada nas 12 temporadas de "RuPaul's Drag Race", que inspirou um spin-off –"All Stars"–, uma série só sobre seus bastidores –"Untucked"–, um especial de Natal e versões internacionais, além de ter popularizado expressões como "sashay, away" e "shantay, you stay".
Esse sucesso chegou ao Brasil, que tem público cativo dessas atrações e uma legião de fãs de Mama Ru, como é carinhosamente chamado o apresentador RuPaul Charles.
E foi justamente nesse universo de saltos altíssimos, perucas gigantescas e muito carão que a Netflix buscou inspiração para o seu primeiro reality show 100% brasileiro.
Apresentado por Gloria Groove e Alexia Twister, "Nasce uma Rainha" tira do palco o sadismo das competições do formato americano, em que drags disputam prêmios e uma coroa de melhor participante, e adota um tom um pouco mais motivacional.
A dupla brasileira faz as vezes de madrinhas e ajuda os convidados a melhorarem suas habilidades em maquiagem, figurino, dança e passarela a fim de impulsionar as carreiras desses aspirantes a drags profissionais e os preparar para o palco. Também auxilia em questões pessoais, reconstruindo laços com parentes e amigos que são avessos à ousadia e ao brilho.
Por isso, a pegada de "Nasce uma Rainha" talvez se assemelhe mais à de outro reality famoso da plataforma, "Queer Eye", em que cinco rapazes gays dão conselhos de moda, beleza, decoração, alimentação e vida social para tipos, digamos, chucros.
"O 'Nasce uma Rainha' não tem nada a ver com 'RuPaul's'. Não é uma competição, mas, por outro lado, também fala sobre o quanto a arte é transformadora", diz Alexia Twister, uma das drags mais famosas da noite paulistana.
"Mas realmente não tem como a gente passar por um formato sobre drags sem mencionar a RuPaul, porque ela foi um divisor de águas", diz Gloria Groove, cantora de "Bumbum de Ouro" e "Coisa Boa".
"O que nós temos em comum é a humanização que acontece no nosso reality, o fato de mostrarmos o que está por trás dessa construção visual e artística de ser drag."
"Nasce uma Rainha" por enquanto vai poder reinar sozinha em terras brasileiras. A expectativa era que uma outra produção fizesse frente a ela –uma versão completamente brasileira do próprio "RuPaul's Drag Race". Há poucos dias, no entanto, a Endemol, que havia comprado os direitos para a refilmagem, confirmou que havia desistido dela.
Ficou para o novo reality da Netflix a tarefa de abrasileirar o universo das drags da TV. Alexia Twister e Gloria Groove dizem que um dos principais objetivos do trabalho é extrapolar a bolha LGBT e falar para mais gente.
"A RuPaul abriu as portas do mundo drag para além da comunidade LGBTQIA+ e, em qualquer programa ou formato, a arte drag discute várias questões importantes. A gente vê tanta violência por causa de ignorância que poder entrar na casa das pessoas e trazer informação é educar. É de certa maneira salvar vidas –por que não?", questiona Alexia Twister.
Na tentativa de informar, ela e Gloria Groove apadrinharam, num dos episódios, um drag king. Ainda pouco conhecidos até mesmo por quem frequenta a noite LGBT, esses artistas também se montam –como se diz ao entrar em sua persona drag–, mas em vez de replicar estilo e trejeitos femininos, enveredam para o gênero masculino.
O episódio se tornou um dos mais desafiadores para a dupla de apresentadoras. Segundo Gloria Groove, por ser uma expressão artística, a performance drag desafia barreiras de gênero, mas tanto ela quanto Alexia Twister costumam investir na feminilidade.
Ausentes na lista de participantes do "RuPaul's Drag Race", os drag kings são mais um dos pontos que separam "Nasce uma Rainha" do sucesso televisivo americano. Outro deles é o simples fato de o novo reality ser nacional, trazendo para o universo drag um estilo e linguagem bem brasileiros.
"Eu sou a primeira a ficar atenta às linguagens de publicidade usadas para promover o reality, às palavras em inglês que acabam escapando para dentro do roteiro", diz Gloria Groove, porta-voz de um universo no qual gírias americanizadas são frequentes. "A gente tenta trazer uma perspectiva nacional nesse programa, até porque as drags trazem muitas referências de outras coisas e áreas da cultura."
"Aqui no Brasil nós temos muito essa coisa do aculturamento, mas nós somos diferentes. Quem teve contato com drags gringas percebe como a nossa postura e a maneira como a gente performa são diferentes. São outras realidades", concorda Alexia Twister.
Essas drags gringas foram as responsáveis por unir Alexia Twister e Gloria Groove, muito antes de "Nasce uma Rainha". Elas contam que abriam shows para artistas estrangeiras que vinham se apresentar nas boates de São Paulo, em festas como a famosa Priscilla.
A primeira das apresentadoras, aliás, já apareceu em dois videoclipes do início da carreira de Gloria Groove. Mas ressalta que elas se aproximaram mesmo graças ao reality.
"Eu tenho um pouquinho mais de tempo de montagem –digamos assim, a idade toda da Gloria", brinca Alexia Twister, sobre a diferença geracional delas. "Mas não importa o tempo de carreira, porque a gente se enxerga nos participantes deste programa."
Programa que, para elas, quer expressar ao máximo o brilho e a cor do universo drag. "A gente mostra que a nossa arte, a nossa cultura, têm muito a oferecer, a dizer, a resgatar. Porque o drag nunca vai ser sobre o que está por fora, mas sim sobre uma transformação e um poder internos", afirma Gloria Groove.