Morte de Beto Freitas é mais selvagem que caso de George Floyd, diz reitor da Zumbi dos Palmares
Beto Freitas, 40, foi asfixiado por quase quatro minutos, diante de 15 testemunhas, após ser espancado por pelo menos dois minutos
Para o reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente, 61, o assassinato de João Alberto Silveira Freitas, 40, um homem negro espancado e asfixiado numa unidade do Carrefour em Porto Alegre, é ainda mais brutal do que a morte de George Floyd, homem negro morto por um policial branco nos Estados Unidos.
Laudo preliminar do Instituto Geral de Perícias (IGP) do Rio Grande do Sul indica que Beto teve asfixia, assim como Floyd, que, ao 46 anos, morreu depois de ter o pescoço prensado contra o chão pelo joelho de um policial em Minnesota.
"Não é possível comparar se uma morte é mais dolorida que outra. Todas são perdas. Mas [o caso de Beto Freitas] foi mais selvagem", disse. Imagens obtidas pela Folha de S.Paulo revelam que Beto Freitas, 40, foi asfixiado por quase quatro minutos, diante de 15 testemunhas, após ser espancado por pelo menos dois minutos.
Vicente integra a Comissão Arns (Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns), que manifestou repúdio ao crime que ocorreu na capital gaúcha.
"Esta comissão vem alertando a sociedade para a escalada da violência contra a juventude negra e pobre, assim como para o racismo em empresas que lidam diretamente com o público -como supermercados, lojas, shopping centers-, em eventos recorrentes, que vão da humilhação verbal à tortura. Mas o 'racismo à brasileira' parece seguir o seu caminho, impávido, degradando a sociedade como um todo e cada um de nós como indivíduos", afirmou a entidade em nota.
O senhor acredita que o caso do Beto Freitas pode ser comparado ao de George Floyd, morto asfixiado nos Estados Unidos?
É ainda mais brutal. Nos Estados Unidos, quando se analisa a cena se observa que o policial assumiu o risco ao não considerar o pedido de Floyd, que não conseguia respirar. Um está com o joelho nas costas dele e outro de pé. O que vemos no Carrefour foi uma ação ativa, com continuidade e intensidade, durante vários minutos. Ficou estabelecida a disposição de alcançar, senão a morte, danos físicos muito graves. A funcionária que aparece gravando é a representação oficial da empresa. Não é possível comparar se uma morte é mais dolorida que outra. Todas são perdas. Mas [o caso de Beto Freitas] foi mais selvagem, com uma raiva injustificada.
É suficientemente compreendido pela sociedade o conceito de racismo estrutural?
Não. Aliás, nem os investidores do Carrefour entendem [as ações da empresa tiveram alta na sexta-feira]. Se entendem, não ficaram muito preocupados ou tocados com a manifestação explícita e cruel do racismo estrutural.
Como o senhor explica o racismo estrutural?
É o vácuo de capacidade de juízo crítico. Diante da realidade violenta, que constrange, que se opõe aos sentimentos e valores, tem-se uma atitude imobilizadora e sem qualquer capacidade de juízo crítico. Veja os investidores do Carrefour. No caso do George Floyd, vimos muitos negros protestando. Mas será que é só problema dos negros? É um problema que mata os fundamentos civilizatórios, de ter afeto, acolher, sorrir. Não há mais possibilidade de se pensar apenas como problema de negros, é um problema de humanos, de quem tem compropmisso com a dimensão humana. Exige que todos nós nos levantemos, mas a gente deixa os negros na avenida Paulista com as bandeiras e fica, quando muito, no conforto dos posts da internet.
O que pessoas brancas devem fazer para combater o racismo sem tirar o protagonismo dos negros?
Não tem que ter essa preocupação [do protagonismo]. Ah, mas não posso levantar essa bandeira porque é dos negros. Não posso falar porque não sinto o racismo. É justamente dessa zona de vácuo que estamos falando. Não é para ajudar o negro, mas o branco também. Se o problema não te toca, ele já te gerou um prejuízo. Se achar que pode fazer algo de forma intensa e resolutiva, daí junte-se aos negros e encontre uma maneira de fazer. A família negra saiu enlutada, mas a família dos jovens brancos [seguranças] também saiu destruída com filhos na cadeia e execrados. Se tivessem tido a capacidade de juízo [diante do racismo estrutural] de que falamos, poderia não ter acontecido. Não tem ganha-ganha no racismo. Todos perdem.
Pessoas negras relatam há tempos que se sentem vigiadas e seguidas por guardas em lojas e mercados, não raro com episódios de violência. Por que isso é tão comum e como evitar?
Isso ocorre porque o racismo estrutural só pode funcionar com um processo permanente de demonização do outro. Não basta dizer que um negro e um branco são diferentes, mas subordinar. É uma ferramenta de convencimento de que, se aquela raça é inferior a minha, sou superior. A demonização significa desconstituir os caracteres humanos e depois tentar colocá-los em uma relação que se traduz como o bem contra o mal. Eu sou bom e belo, ele é inferior, o feio e o maldito. Por conta disso, não só posso como devo combater esse feio que produz o mal. Devo eliminá-lo. Constitui-se como uma ameaça. Diante de uma situação concreta, esse pensamento traz a a discriminação. Se o negro entrou no shopping, e negro é ladrão.. Qualquer gesto diferente e que remete a essa dimensão pode ser o suficiente para abordar, intervir, cercear e, no limite, exterminar. Para mudar, é preciso transformar a dimensão do que é belo em um belo diverso. Depois, precisamos transformar a dimensão ética, onde o mal está sempre no outro.
Qual é o simbolismo da morte de Beto Freitas ter ocorrido às vésperas do Dia da Consciência Negra?
Nossa senhora. Foi o mesmo peso da morte do Floyd ter acontecido pouco antes da eleição. Isso fez o Trump perder a eleição. Além da economia, da pandemia, dele próprio, o ponto de inflexão foi o George Floyd. O Biden foi ao velório, fez um plano, apresentou-se com uma mulher negra qualificada [Kamala Harris, sua vice]. Ele reconheceu o racismo e a dificuldade de combatê-lo e anunciou ações.
Qual a opinião do senhor em relação à gestão da Fundação Palmares sob o governo de Bolsonaro? Recentemente, biografias de personalidades negras foram censuradas no site.
É um uso político rasteiro, com método, para tentar cumprir um propósito de uma ideologia. É um governo que não respeita as pessoas, suas histórias e instituições. O presidente e o vice dizem que não há racismo, que é uma coisa que se está tentando importar dos Estados Unidos, que é coisa de esquerda, demonizando a esquerda também. Para desqualificar, tem que negar que existe. Como não existe, não há amparo para fazer qualquer reivindicação. Não se reivindica o que não existe. Se não é racismo, o que está se fazendo está justificado, há licença para discriminar. Muitos brasileiros têm fé nisso, e é para essas pessoas que estão falando. Não se trata de nenhum ignorante, analfabeto politico ou social. São pessoas com métodos e objetivos claros. Quanto à Fundação Palmares, o presidente Sérgio Camargo nem poderia estar fazendo diferente ou seria demitido.
Apesar de Porto Alegre ser a cidade onde a ideia do Dia da Consciência Negra surgiu, a data não é um feriado na capital gaúcha, como é em demais cidades do país. Isso colabora para inviabilizar a discussão sobre o racismo aqui?
Por causa do que todos nós, brasileiros, devemos de respeito aos negros, deveria ser feriado nacional, como é nos Estados Unidos no Dia de Martin Luther King. Aqui, os negro deveriam estar imortalizados em estátuas e monumentos, assim como Luther King está no mesmo local dos pais fundadores da nação norte-americana. É uma dívida que o Brasil tem com sua história. Quem construiu o país? Os negros. Quem foi massacrado? Os negros.
A morte de George Floyd foi o suficiente para gerar transformações extraordinárias. Com o Dia da Consciência Negra, Palmares passou a ser visto como herói. O Dia da Consciência Negra é feriado em oito capitais, milhares de municípios. Quem está ficando para trás é Porto Alegre, onde a ideia foi criada. Talvez, até em decorrência da morte do Beto, tenhamos mais avanços, empurrando para um reconhecimento e o respeito do negro porto-alegrense.
Como o senhor avalia o avanço das candidaturas negras nas Câmaras municipais do país?
Novamente, veio de vocês [gaúchos] a inspiração. Vocês elegeram cinco vereadores negros, foi maravilhoso. Isso dá a dimensão do quanto podemos nos aproximar dessa civilidade que estamos buscando. Insistimos que o racismo produz distorção, e essa distorção limita e impede a regularidade democrática. Se continuarmos entendendo isso e continuarmos criando ferramentas para equilibrar a distorção, logo resolveremos o problema. Estamos vendo que os sistemas, mesmo com suas imperfeições, quando trabalhados produzem respostas e resultados.
- RAIO-X
José Vicente, 61
Reitor e fundador da Universidade Zumbi dos Palmares, criada em 2004 para impulsionar o protagonismo negro. É integrante da Comissão Arns (Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns) e do Movimento AR. É doutor em educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep), mestre em administração pela instituição e mestre em direito pela Escola Paulista de Direito.