Vitória de Covas é abertura do jogo de Doria contra Bolsonaro em 2022
Resultado em São Paulo pode ser lido como um sinal para as pretensões presidenciais de João Doria em 2022
Como todo leigo candidato a enxadrista vê na minissérie "O Gambito da Rainha" (Netflix), a abertura de um jogo é a chave para a vitória ou a derrota no tabuleiro de xadrez. O triunfo de Bruno Covas (PSDB) sobre Guilherme Boulos (PSOL) na disputa eleitoral em São Paulo pode ser lido como um sinal auspicioso para as pretensões presidenciais do governador tucano João Doria (SP) em 2022.
Paradoxalmente, é nesta vitória que reside o primeiro dos problemas que Doria irá enfrentar em sua caminhada para desafiar Jair Bolsonaro (sem partido) e outros daqui a dois anos.
Primeiro, às boas notícias para o tucano. A montagem da aliança eleitoral de 11 partidos em torno de Covas, um prefeito que tinha avaliação mediana e cresceu em termos de imagem pública após seu enfrentamento transparente do câncer e com o empenho no combate à pandemia, é obra de Doria.
A frente obedece a uma lógica que mira 2022. Doria entende que a tradição tucana de impor candidaturas no campo da centro-direita, que teve seu último suspiro no naufrágio presidencial de Geraldo Alckmin em 2018, está comprometida.
Assim, aposta desde o ano passado numa composição que dá mais peso aos aliados, DEM e MDB à frente, com o PSD e partidos do centrão como bônus eventual –a fidelidade do Republicanos de Celso Russomanno a Bolsonaro é, digamos, fluida.
Ao colocar o MDB na vice de Covas, contra a vontade do prefeito, Doria buscou sinalizar aos aliados seu compromisso com o acertado –ainda há muita desconfiança, entre líderes nacionais do DEM, sobre a promessa de apoiar o hoje vice democrata Rodrigo Garcia na campanha estadual em 2022. A lembrança da acusação de Alckmin, que o chamou de traidor em público após a tentativa de se colocar como presidenciável já em 2018, pesa.
No arranjo, a próxima triangulação é a eleição do sucessor de Rodrigo Maia (DEM-RJ) na presidência da Câmara, em fevereiro. Se o democrata não der um jeitinho de concorrer de novo, o que é ilegal, as fichas vão para o canto da mesa de Baleia Rossi (MDB).
O mapa eleitoral dos grandes colégios eleitorais de capitais neste ano, se não pode ser divinatório, dá uma dica sobre o que o governador paulista projeta. No chamado Triângulo das Bermudas, partidos candidatos a aliados em 2022 dominam: São Paulo com o PSDB, Rio com o DEM e Belo Horizonte, com o mais arredio PSD.
No caso paulistano, Doria cumpriu o acordo. O MDB está na vice-prefeitura e, na prática, o DEM do influente vereador Milton Leite vai no pacote. Mas é aqui que começam seus problemas: em casa.
Empoderado pelas urnas, para usar o jargão pedestre, Covas sai da sombra do "vice que herdou". Assim como Gilberto Kassab (PSD), que assumiu e foi reeleito após José Serra (PSDB) virar governador, o prefeito agora pode impingir uma marca própria à gestão do terceiro orçamento do país.
Isso animou, e não pouco, a ala tucana de velha guarda que sempre chamou Doria por nomes impublicáveis. Ela havia se acomodado ao poder de fogo de quem governa São Paulo, mas nunca deixou de buscar alternativas.
No campo nacional, o grupo que tem o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso como líder sempre apostou no mercurial Luciano Huck, que por ora parece de volta ao tabuleiro da sucessão de 2022.
Mas ele também vê no governador tucano do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, uma promessa para a disputa. Covas, jovem como o gaúcho, complementaria o time tucano na visão dessa ala do partido.
Apesar de ter sido instalado na presidência do PSDB com a mão de Doria, Bruno Araújo sempre que pode enaltece o potencial das lideranças mais novas do partido. A aliados, diz que o governador tucano hoje não ganharia prévias na sigla.
Portanto, Doria terá de resolver essa questão doméstica ou apostar numa desgastante mudança de sigla. Aliados do governador apostavam, ao longo do fim de semana, se Covas iria deixar o tucano na mão na segunda ou na terça após o pleito. Entusiastas do prefeito eram mais comedidos, dizendo que nada deveria ficar tão claro até sua posse em janeiro.
O PSDB também traz outro desafio substancial aos planos de Doria. O partido governa, com intermitências breves de vices aliados em 2006 e 2018, o estado desde 1995 –ou 1983, se contar a carreira de seus membros ainda no antigo PMDB.
Como diz um importante membro nacional do partido, o osso não será largado para o DEM de Rodrigo Garcia facilmente.
Ele define a coisa em termos simples: os tucanos não têm garantia alguma de que o vice de Doria seria reeleito se assumisse em 2022, nem de que teriam espaço no governo, e tudo isso num cenário em que a vitória federal não está nada certa.
Essa "realpolitik" reverbera no DEM, cujos líderes temem, reservadamente, o que pode acontecer no estado. O fato de Doria falar com muito entusiasmo no nome de Patrícia Ellen, sua secretária de Desenvolvimento Econômico, é motivo não só de ciúmes na sua equipe, mas de atenção entre aliados.
Com tudo isso, o cenário colocado é promissor e desafiador para o tucano. Com o PSDB enfraquecido nacionalmente em termos de prefeituras, tendo perdido mais de 300 cidades, seu discurso de união em 2022 ganha densidade.
Por outro lado, com aliados potenciais com o PSD de Kassab e o DEM de Maia e de ACM Neto ganhando espaço, para não falar no ainda líder municipal MDB, o preço individual na disputa vai subir.
Como mostrou o Datafolha na semana passada, eleitor dá bola para candidato, não partido, e é isso que estará na mesa ao fim.
Nacionalizar Doria, hoje percebido como um produto paulista apesar de sua rejeição na capital, parece passar pelo sucesso e pela eventual distribuição da vacina chinesa Coronavac bancada por seu governo.
Isso dito, sua posição hoje é melhor do que a de Bolsonaro, que viu seus apadrinhados Russomanno e Marcelo Crivella (Republicanos-RJ) naufragarem neste pleito, além de um espírito generalizado de moderação do eleitorado. Nem Capitão Wagner (Pros, em Fortaleza), que buscou se afastar do presidente, levou.
Já a esquerda, que ganhou espaço com Boulos em São Paulo, terá problemas para se organizar devido à gravidade em torno de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que não larga o osso da hegemonia de seu campo apesar do desastre desse pleito –nenhuma capital foi conquistada.
Voltando à série "O Gambito da Rainha", sempre cabe a ressalva: no xadrez, a vital abertura é de quem tem as peças brancas no tabuleiro. No Brasil, usualmente o presidente é quem as têm, mas o duro 2021 com coronavírus e crise econômica à frente impossibilita saber hoje quem dará a largada em dois anos.