Emicida apresenta histórias invisibilizadas em documentário de 'AmarElo'
Filme 'AmarElo - É tudo pra ontem' chega ao catálogo da Netflix no dia 8 de dezembro
Com “AmarElo - É tudo pra ontem”, o rapper paulista Emicida insere mais uma camada no que ele define como um experimento social. O documentário, que estreia pela Netflix no dia 8 de dezembro, não é apenas um apanhado dos bastidores de produção do álbum “AmarElo” ou de cena do show realizado pelo músico no Theatro Municipal de São Paulo em novembro do ano passado. Para além de tudo isso, o filme proporciona um didático mergulho na história da cultura negra nos últimos 100 anos, estabelecendo elos entre samba, modernismo e militância negra. Em entrevista, o homem por trás desse resgate histórico em formato audiovisual fala sobre a concepção do seu novo lançamento e os temas que movem sua criação.
Função do documentário
Há uma cláusula nos contratos das gravadoras que diz que a obra pode ser reproduzida em CD, DVD, streaming e outras mídias que vierem a ser inventadas. Com “AmarElo” eu estou entendendo do mesmo jeito. Dentro de tudo o que a gente compreende como experimento social, o filme vem como uma parte que estava faltando, uma experiência visível, porque o ser humano é um animal extremamente visual. É como se, de alguma forma, a gente estivesse destravando uma fase, onde a gente vai poder entrar agora não no disco e na consequência dele para frente, mas na história que resultou no imaginário que pode parir um álbum como aquele. E aí a gente vai poder fazer uma reflexão a respeito da origem e entender onde a gente está dentro da origem. Todas as ações que a gente fez até aqui foram formas de intensificar cada vez mais a experiência e mostrar que ela não era simplesmente digital. Com a pandemia, acabamos migrando o que estava previsto para a rua para dentro do digital. Mas a verdade é que “AmarElo” se espalha para muito além disso. O documentário cumpre exatamente a função de mostrar a base. É uma forma de resumir tudo e dizer: antes, agora e depois. Ele também abre uma porta para que o futuro aconteça de uma forma mais bonita.
História resgatada
Eu gostaria muito que, ao final do filme, as pessoas compreendessem que um Emicida não surge do nada. Sou fruto de uma série de outras movimentações que aconteceram na cultura, na política e na intelectualidade brasileira, de gente que expandiu o entender desse País a respeito dele mesmo. Temos o hábito muito triste de reverenciar pouco as pessoas incríveis que a gente produziu. O documentário joga luz em uma parte significativa da história do Brasil, que foi invisibilizada e nem os próprios brasileiros tiveram acesso. Acho que a gente conseguiu contar essa história de uma maneira convidativa e emocionante. Quais são as consequências dos ativistas no último século? São todos os nossos sonhos e a iminência deles se transformarem em realidade. Por isso, eu quero mostrar que essa é uma história coletiva, não é só minha. Usamos o “AmarElo” como fio condutor. Na verdade, é um trabalho em conjunto, inclusive com gerações que vieram antes, pessoas que nem estão mais aqui, mas que fazem parte disso.
Vidas negras
Observo no mercado e na comunicação, com acertos e erros que são cometidos, que pessoas pretas são marcadas como se a existência delas fosse definida pelo conflito que elas têm que atravessar enquanto estão vivas. Então, é muito comum ouvir alguém se referindo às pessoas pretas como se elas fossem naturalmente ativistas, quando muitas vezes, se fosse uma opção, a última coisa que a gente seria era isso. O que a gente quer é viver a nossa vida, olhar no espelho e se sentir importante. Você quer saber que sua vida vale à pena, que não vai ser assassinado quando for ao mercado e deixar de ter medo, porque a nossa experiência é atravessada pelo medo por mais vezes do que a gente imagina. Mudamos o lugar por onde vamos passar, onde compramos, a forma como nos vestimos, o tom no qual falamos, tudo isso porque não nos sentimos seguros na sociedade na qual vivemos. Então, a minha forma de compartilhar essa humanidade é através das histórias que eu conto.
Ascensão pelos livros
Tenho observado, sobretudo no movimento rap, a volta de uma estética que tinha sido deixada para trás lá nos 1990. Fico muito triste em, de novo, ver a molecada fazendo um monte de clipe com armas e drogas. Acho importante mostrar livro, porque foi isso que me colocou num lugar sólido, bonito, de respeito e reverência, onde eu não só posso produzir e cuidar da minha família, mas também ajudar outras pessoas a fazerem isso. O que eu estou dizendo para a molecada quando eu coloco os livros no centro é que a gente precisa sim subir alguns degraus do ponto de vista intelectual e o caminho para isso é a leitura. Se eu milito por alguma coisa é para que a gente leia e converse. É através desse barato que a gente vai chegar onde quer chegar. Artisticamente falando, essas coisas que eu mencionei antes têm o direito de existir, mas eu acho que a gente precisa também ter um contraponto que mostre para os jovens que essa não é a única forma de se fazer isso. A música rap é muito ampla, a cultura hip hop também. Acho que a educação no nosso País está tão entregue às traças que as pessoas simplesmente abdicam dessa relação e permitem que a ignorância continue dando as cartas. Da nossa parte enquanto sociedade civil, o que a gente pode fazer é mostrar exemplos factíveis de vitórias propiciadas pelas inteligência, tendo um conhecimento legal do que o Milton Santos já falou: “O Brasil não lida bem com intelectual”. Sobre esso daí eu tenho 100% de certeza. Mas está tudo certo. Estou pronto para lidar com esse País, assim como estou pronto para dizer para os moleques que se hoje existe um Emicida é porque ele teve coragem de abrir um livro e entrar dentro daquela história.
Recado dado
A nossa intenção, ao colocar esse filme na rua, é fazer com que as pessoas terminem esse filme com a sensação de que elas podem muito mais enquanto País. Graças a essa parceria com a Netflix, ele vai poder chegar a 190 países, num momento em que a imagem do Brasil está oscilando entre uma federação digna de pena e uma piada. Nesse momento, as pessoas vão poder olhar para uma história bonita que surge daqui. Da nossa parte, a gente precisa reivindicar o nosso direito de ser grandioso, para que a mediocridade não sequestre a gente ainda mais, como já está acontecendo.