Pesquisa

Estudo diz que 61% dos países adotaram medidas contra pandemia que ameaçam a democracia

Para o Idea, essas medidas trazem preocupações por serem desproporcionais, ilegais, de prazo indefinido ou desnecessárias

Lockdown é a fase mais severa de restrições durante pandemia - Arthur Mota/Folha de Pernambuco

Mais da metade dos países do mundo tomou medidas para conter a pandemia de Covid-19 que podem trazer danos à democracia e aos direitos humanos, como abrir caminho para a vigilância aos cidadãos, a perseguição a opositores e o aumento do poder de militares.
A conclusão é do levantamento "The Global State of Democracy", elaborado pelo Idea (Instituto para a Democracia e Assistência Eleitoral, na sigla em inglês), divulgado no inicio de dezembro.

Até novembro de 2020, 99 dos 162 países monitorados adotaram medidas do tipo, o que representa 61% do total pesquisado. A ONU reconhece a existência de 193 países no planeta. Para o Idea, essas medidas trazem preocupações por serem desproporcionais, ilegais, de prazo indefinido ou desnecessárias, e por abrirem espaço para outros tipos de violações.

Como exemplos, o instituto cita a imposição de "lockdowns" sem base legal, a tentativa de esconder dados sobre a pandemia, a obrigatoriedade de usar apps de rastreamento pessoal e de forçar o uso de medicamentos cuja eficácia é questionada. Ao menos 118 países ainda tinham restrições de circulação no final de novembro. Ao longo do ano, ao menos 96 países decretaram "lockdowns", vetos totais ao deslocamento, exceto em situações de emergência.

O temor é de que medidas assim abram caminho para outros gestos autoritários no futuro próximo, como a espionagem de cidadãos, a perseguição a opositores e o cerceamento à liberdade de expressão. O levantamento aponta casos de detenção e a expulsão de jornalistas que cobriam a pandemia e a censura a médicos e cientistas, impedidos de divulgar dados sobre a situação real da crise sanitária.

A adoção de medidas consideradas preocupantes foi mais comum em regimes autoritários -90% deles o fizeram, contra 46% dos países avaliados como democráticos. Entre os países com mais ações questionáveis, estão Índia, Malásia e Iraque, locais em que a estabilidade da democracia já estava sob dúvida há alguns anos.

A democracia no Brasil também foi considerada "em retrocesso", segundo o estudo. Fatores como os ataques à liberdade de imprensa, muitos deles feitos pelo presidente Jair Bolsonaro, contribuem para isso. O Brasil é citado como exemplo de governo que buscou dificultar o acesso aos dados da Covid-19 e que deu a militares a função de comandar a estratégia nacional contra a doença.

"Esse papel proeminente na pandemia pode começar a legitimar uma maior presença dos militares na vida pública, mesmo após o fim da pandemia, e pode minar a democratização em regiões com histórico de governos autocráticos e militares", diz o estudo. O Brasil foi comandado por uma ditadura militar, de 1964 a 1985.

Os pesquisadores recomendam que a atuação dos militares tenha escopo restrito e que haja garantias de que eles agem sob comando civil. O Brasil também foi incluído em uma relação de países onde o Legislativo conseguiu contrabalançar o poder do Executivo, como quando o Congresso derrubou vetos de Bolsonaro.

O estudo também aponta que 93 eleições previstas para 2020, em diversos países, foram adiadas, enquanto 92 foram feitos no prazo. Ao todo, apenas 23% dos pleitos programados para este ano ainda não aconteceram, e 77% deles foram realizados neste ano, mesmo que após a data original.

Para o Idea, os complexos debates sobre adiar ou não os pleitos tiveram efeitos negativos na imagem das democracias, ao abrir espaço para boicotes e críticas sobre a legitimidade dessas votações em condições restritas. O medo de contágio gerou, ainda, queda no comparecimento às urnas, o que também abriu espaço para contestações sobre a legitimidade dos resultados.

A pandemia também foi usada para perseguir opositores. Em Bangladesh e Camboja, por exemplo, rivais dos partidos no poder foram presos pela acusação de espalhar mentiras sobre o coronavírus. Em Camarões, opositores foram detidos ao distribuir materiais de saúde.