Clarice 100 Anos

O Recife guardado na memória e na literatura de Clarice Lispector

A autora viveu na cidade dos 5 aos 15 anos de idade, frequentando lugares como o Ginásio Pernambucano e a Rua da Imperatiz

Estátua de Clarice Lispector está na Praça Maciel Pinheiro, próximo da casa onde ela viveu - Rafael Furtado/Folha de Pernambuco

Muitas cidades passaram pela vida de Clarice Lispector, da congelante aldeia ucraniana onde ela nasceu até o ensolarado Rio de Janeiro, passando por Nápoles, Berna e Washington. Entre todos os lugares onde a escritora viveu, o Recife é que guarda as memórias fundamentais para a formação da sua identidade.

Embora o reconhecimento oficial como cidadã pernambucana só tenha vindo em novembro de 2020, mais de quatro décadas após sua morte, Clarice já se declarava como tal há muito mais tempo. Foi com essa naturalidade que a autora foi matriculada, ainda adolescente, em um colégio carioca, logo após a mudança da família para a Capital fluminense.

Clarice tinha apenas 5 anos de idade quando chegou ao Recife, acompanhada por pai, mãe e duas irmãs mais velhas. Só deixou a cidade aos 15, já com o prazer pelas letras e o fascínio por contar histórias incutido em sua mente. “Ao mesmo tempo em que Clarice aprendia a ler, ela já sentia a necessidade de escrever. Era uma menina muito criativa, inventiva e teatral”, conta Geórgia Alves, jornalista e pesquisadora da obra da escritora.

Foi vivendo no Recife que a pequena Clarice ensaiou seus primeiros escritos. Ao Diario de Pernambuco, chegou a enviar alguns textos para o suplemento infantil que o jornal mantinha na época, mas nunca foi publicada. Por volta dos 9 anos, após assistir a um espetáculo no Teatro de Santa Isabel, escreveu uma peça intitulada “Pobre menina rica”, que escondeu atrás de um móvel da casa. Todo esse material se perdeu com o tempo, mas há comprovação de sua existência em entrevistas concedidas pela autora. 

Enquanto viveu na Capital pernambucana, Clarice ocupou com a família, pelo menos, três endereços distintos, todos no bairro da Boa Vista, na região central da cidade. O primeiro e mais conhecido fica junto à Praça Maciel Pinheiro, onde há uma estátua erguida em sua homenagem. Na Rua da Imperatriz, ela morou em mais de uma casa. Em uma delas foi vizinha da Livraria Imperatriz, que funciona até hoje no mesmo local. A menina rica que não se recusa a emprestar um livro à protagonista do conto “Felicidade Clandestina” foi inspirada em uma das filhas de Jacob Berenstein, fundador da loja. 

“O bairro da Boa Vista foi muito ocupado pelos judeus que começaram a vir para o Recife no início do século 20. Os imóveis eram mais baratos, havia transporte com mais facilidade e era perto do comércio. Tudo isso favorecia que eles se estabelecessem por ali, já que a maioria não tinha recursos e trabalhava como comerciante. O próprio pai de Clarice era mascate”, explica o historiador Henrique Inojosa. 

A primeira escola onde Clarice foi matriculada no Recife foi o João Barbalho, em Santo Amaro. Embora nenhum registro da presença da escritora na instituição tenha sido encontrado por pesquisadores, ela própria cita o colégio na crônica “As grandes punições”, assim como sua convivência com o colega de turma Leopoldo Nachbin, que viria a ser uma referência da matemática no Brasil. Depois, a aluna passou a estudar no Colégio Hebreu Ídiche Brasileiro, que hoje funciona com o nome de Colégio Israelita Moysés Chvarts, na Torre. Já em 1932, ela começou a frequentar o Ginásio Pernambucano.

As vivências em território pernambucano estiveram presentes não só na memória da escritora, mas também em suas obras. Segundo Geórgia Alves é principalmente entre 1967 e 1973, quando a autora passa a escrever semanalmente crônicas para o Jornal do Brasil, que sua escrita se volta para as lembranças da infância. “Ela cita a palavra Recife em nove dessas obras, mas eu contaria 16 textos que guardam essa relação com a cidade, pois tratam justamente do período que ela passou aqui. Ao ler essas crônicas, a gente vê nitidamente o que ela viveu por aqui voltando aos poucos”, analisa. 

Clarice, aos 9 anos, na Praça do Derby (Foto: Reprodução)

Em “O passeio da família”, por exemplo, Clarice narra um passeio em família na região portuária. “Restos de Carnaval” mostra a menina a observar a efervescência dos dias de folia nas ruas da cidade, enquanto em casa só se agravava o estado de saúde de sua mãe, que viria a morrer em 1930, sendo sepultada no Cemitério dos Israelitas do Barro. Já em “Banhos de mar”, ela relembra das idas com o pai até Olinda, onde o cheiro de mar a invadia e embriagava. 

Depois de adulta, a escritora chegou a visitar Pernambuco outras duas vezes. A primeira, na companhia do ex-marido e do primeiro filho, veio visitar parentes que por aqui ficaram e acho a Avenida Conde da Boa Vista, onde também chegou a residir, menor do que sua memória registrava. Com um despedida em grande estilo, a autora fez sua última viagem ao Recife em 1976, ano anterior a sua morte. Na ocasião, apresentou uma conferência no auditório do Banco do Estado de Pernambuco (Bandepe).