Clarice 100 anos: prosa, rima e pernambucanidades
Escritora ucraniana, pernambucana de criação, brasileira naturalizada se tornou um dos maiores nomes da literatura nacional
Se fizéssemos uma viagem a 1920, encontraríamos um Recife repleto de intelectuais, escritores e cientistas que estavam mudando e participando ativamente do cenário nacional. Era um período agitado. O século 20, ainda no início, já dava os contornos de como seriam seus anos até o final da década de 1990. Em meio à simbiose de fatos e transformações sociais, a Cidade receberia naquela época uma das suas maiores escritoras: a ucraniana Clarice Lispector. Ela havia nascido em 10 de dezembro de 1920, chegou à Capital pernambucana ainda bebê, fruto de uma imigração forçada da sua família judia do país natal. Hoje, Lispector faria 100 anos, com uma contribuição imensurável para a cultura e literatura brasileira, sobretudo, a pernambucana. Em homenagem ao legado da escritora, a Folha de Pernambuco transcreve, em páginas impressas e canais digitais, o especial “Clarice 100 anos: prosa, rima e pernambucanidades”.
Enfatizar a pernambucanidade de Clarice não é bairrismo. Foi no Estado que a escritora formou sua propriedade intelectual e rabiscou seus primeiros versos na casa de número 347, na Praça Maciel Pinheiro, no bairro da Boa Vista, área central do Recife. O sentimento de pertencimento era tão grande que alterava sua verdadeira naturalidade, marcada pelo sotaque do Estado. “Em alguns documentos, ela alterava aquele item que chama “natural de”. Em vez de colocar Rússia, ela colocava Pernambuco. Inclusive a dicção dela era local. Se você escuta as entrevistas dela e não sabia da origem ucraniana dela, você diria: essa mulher é nordestina”, explica Teresa Montero, professora, atriz e biógrafa que se dedica em estudos sobre Lispector há 30 anos.
Apesar da ligação com a Veneza dos trópicos, a passagem de Clarice pela Cidade não foi tão longa. Ela perdeu sua mãe ainda muito cedo, quando faleceu aos 41 anos em 1929. Seu pai, destinado a casar as filhas com rapazes judeus, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1935. A capital fluminense seria um dos locais do mundo que a escritora viria a repousar, escrever e inspirar. Em 1939, ingressou na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (antiga Universidade do Brasil), mas logo seu interesse pelo curso foi diminuindo, enveredando para o jornalismo, quando passou a integrar a Agência Nacional - publicadora de notícias do governo.
Imprensa
A inserção na imprensa foi fundamental para colocar Clarice na literatura. Em 1940, publicou seu primeiro conto, “Triunfo”, na antiga Revista Pan. Já envolta por escritores e escritoras famosas, lançou o primeiro romance, o “Perto do Coração Selvagem”, em 1943. A obra foi o pontapé para sua carreira literária, que lançou 18 livros, com tradução para 40 países e traduzida em 32 idiomas. Entre as mais famosas, estão “Laços de Família” (1960), “A Hora da Estrela” (1977) e a “A Paixão segundo G.H” (1964). Entre as obras publicadas, houve espaço para Lispector ser tão múltipla, que fez de cartas, crônicas, poesias, romances e contos a sua morada na literatura brasileira.
Entretanto, entre o primeiro livro publicado e a segundo segundo levaram quase duas décadas. Uma coincidência unia Clarice à outra escritora, que era outro fenômeno na época: Carolina de Jesus. Enquanto a primeira publicara “Laços de Família”, a segunda emplacou o clássico “Quarto de Despejo”, ambos pela editora Livraria Francisco Alves Editora. Menos de um mês de diferença entre as duas obras, consideradas pelos críticos e estudiosos como fundamentais para a discussão de gênero na época. Inclusive, as duas tinham admiração mútua, como mostrou uma reportagem da Revista Manchete, em 1961, em que reproduz um diálogo em que as escritoras demonstram afeto e elogios às escritas. Clarice e Carolina vieram a falecer no mesmo ano, em 1977.
Legado
Segundo Teresa Montero, além da qualidade narrativa, considerada única, a obra de Clarice foi renovada e amplamente divulgada sucessivamente. Isso contribui para torná-la um dos ícones da escrita mundial, a qual considera como uma das maiores escritoras judias de todos os tempos. “O primeiro fator é a singularidade da obra dela, é inquestionável que ela produziu um tipo de obra único. E o fato dela ter uma escrita, mas uma visão de mundo muito singular também. A Clarice ia fundo nas coisas, até nas coisas mais banais do dia a dia. E tem, obviamente, tem todo um caminho de recepção da obra que foram construídos durante décadas: aí entra a editora que publica suas obras, tem os estudos que foram feitos também”, afirma Montero.
Recife
Um ano antes da morte, Clarice voltou ao Recife, em 1946. Aqui, onde participava de um congresso, chegou a declarar seu amor pela cidade. Para Teresa Montero, fica muito nítido como a escritora nutria um sentimento pela capital pernambucana, refletindo até nos seus círculos sociais. “A relação dela com João Cabral de Melo Neto era bem nítida. Na última publicação de “Todas as Cartas”(2020), tinha correspondências de Clarice para João Cabral e isso fica muito evidente o quanto ela o admirava. Clarice fazia questão de se aproximar e de se relacionar com nordestinos, a exemplo de Manuel Bandeira”, conta.
Ela nutria um sentimento tão forte que lançou o romance “A Hora da Estrela” no ano de sua morte. O livro conta a história da alagoana Macabéa, que foi ao Rio de Janeiro tentar a sorte e vencer na vida. Ali, Lispector coloca questões existenciais, filosóficas e de gênero, numa personagem que sempre está em busca de identidade. O romance foi adaptado para o cinema, sob a luz de Suzana Amaral, em 1985, fazendo a estrela de Marcélia Cartaxo brilhar em sua estreia no cinema nacional.