Argentina

Futebol fez primeira jogadora trans da Argentina sentir-se livre

Mara Gomez - Juan Mabromata/AFP

Mara Estefania Gómez, 23, fez de tudo para não chorar na última segunda-feira (7), ao entrar em campo pelo Villa San Carlos, pequena equipe da cidade de Berisso, na grande Buenos Aires. Ir às lágrimas era apenas uma das coisas que ela não queria fazer nesse dia. Também não desejava pensar no passado, na mãe Carolina, na irmã Evelyn, na sobrinha Kima e na espera até chegar àquele momento.

Antes de iniciar a partida, o rival Lanús lhe presenteou com uma camisa com seu nome e o número 10 às costas. Foi quando ela, a primeira jogadora transsexual a atuar por um time profissional no futebol argentino, esqueceu tudo o que não queria fazer e chorou.

"Esse é um caminho sobre o qual até alguns anos atrás não se podia nem falar, quanto mais viver. Hoje estamos falando e vivendo isso", definiu à Folha de S.Paulo

Ela teve de esperar quase um ano para conseguir estrear. O Villa San Carlos anunciou sua contratação em 9 de janeiro deste ano, mas a presença de uma jogadora trans abriu polêmica no futebol do país.

Era necessário pedir autorização para a AFA (Associação de Futebol Argentino). O processo foi demorado, com debates entre os que defendiam a legitimidade da presença dela e os que afirmavam que Mara havia nascido homem biologicamente e por isso não poderia atuar entre as mulheres.

Quando o assunto estava prestes a ser resolvido, a pandemia da Covid-19 paralisou todo o futebol. A autorização saiu no final da semana passada, em evento que contou com a presença do presidente da AFA, Claudio "Chiqui" Tápia.

"Houve momentos em que pensei deixar tudo isso de lado. Passei muitas horas ruins, de ansiedade e sentimento de que não daria certo. Estava em dúvida do que ia se passar comigo. Estava cansada fisicamente e emocionalmente", relata a jogadora, que diz atuar "de 9", do jeito argentino de ainda se referir à posição em campo de acordo com o número da camisa. Mas ela estreou com a 7. Na partida diante do Lanús, o Villa San Carlos perdeu por 7 a 1.

Mara começou tarde no futebol, aos 15 anos. Nunca se sentiu atraída pelo esporte que via apenas pela televisão, embora diga que sua família é "futbolera" (de fãs de futebol). Ela afirma que o mundo da bola apareceu em um momento em que estava deprimida por causa da discriminação.

"Nunca tive interesse em jogar, mas me convidaram um dia e resolvi participar. Eu me sentia em um momento crítico, sem saber quem eu era. Joguei mal porque claramente não sabia, mas vi que era uma brincadeira, haviam risos. Me senti livre enquanto jogava, esqueci de todos os males do dia a dia. Era uma terapia porque me fazia bem emocionalmente. Aos poucos, vi que tinha habilidade", completa.


O que lhe fez mal foi ler os comentários nas redes sociais a partir do momento em que sua contratação foi anunciada, ou a cada notícia publicada pela imprensa argentina. A crítica menos preconceituosa era que Mara, por ser mais alta e teoricamente mais forte que as outras jogadoras, iria machucá-las.

Ela não vê o futebol como uma carreira. Não tem sonhos, pelo menos declarados, de atuar pelos clubes mais populares do país ou de chegar à seleção. Sabe que se isso acontecer, a polêmica será multiplicada. Defender o Villa San Carlos, que no masculino disputa a segunda divisão, é uma coisa. Atuar por Boca Juniors ou River Plate seria bem diferente.

A atleta também está no último ano do curso de enfermagem. Quando não estuda ou treina, trabalha como manicure.

"Quero continuar desfrutando do esporte, correndo em campo, respirando. O que eu quero é aproveitar o que o futebol pode oferecer sem ninguém dizendo que não posso. Estou contente de ter conseguido jogar [pelo Villa San Carlos]. Fui muito bem recebida pelas outras jogadoras e isso já me deixa contente."

Mara Gómez quebrou uma barreira e vê isso como conquista maior do que qualquer gol ou título que venha a conquistar em campo. Ela pensa que quem vier depois não terá de passar por tantos problemas para entrar no mundo do futebol.

"Não só se trata da inclusão, mas também de superação para romper os esquemas patriarcais. Claramente há muitos obstáculos. O fundamental para isso é se fazer forte para conseguir o que se quer", finaliza.