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Voluntariado inspira tomada de ação por justiça social em ano de crise e pandemia

Em 2020, Movimento Novo Jeito, fundado pelo recifense Fábio Silva, completou dez anos. Conheça histórias de quem mudou de vida por meio de projetos sociais.

Aliança de Mães e Famílias Raras é uma das instituições que utilizam o Transforma Brasil - Rafael Furtado/Folha de Pernambuco

O absurdo nos cerca e não pode ser naturalizado. A desigualdade social, que se reflete em todos os aspectos do cotidiano - na saúde, na mobilidade, na educação, na segurança -, é uma tragédia histórica não só no mundo e no Brasil como, principalmente, em Pernambuco.

Ela está na sua cidade, no bairro onde você mora e, muitas vezes, na própria rua do seu condomínio. Face exposta das veias abertas da América Latina, como nos recorda um dos mais célebres escritores do nosso continente, o jornalista uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015).

É comum que a reflexão volte à tona nesta reta final de dezembro em meio a todo esse clima de retrospectiva, embora seja urgente em qualquer outra época do ano. Especialmente se pensarmos em 2020, marcado pela maior crise sanitária, social, econômica e política do último século.

Pensar na realidade, por mais difícil que ela seja, não deve, no entanto, paralisar ninguém. Muito pelo contrário. É em momentos assim que a tomada de ação e o olhar para o outro se fazem mais necessários. Por isso, o Zoom deste fim de semana pós-Natal dedica-se ao voluntariado.

O recifense Fábio Silva, de 43 anos, é uma peça-chave nesse raio de atuação. Presidente do Porto Social, incubadora de projetos de empreendedorismo de base comunitária, e idealizador do Movimento Novo Jeito, que apoia iniciativas e busca “despertar o trabalho voluntário na juventude”, como define, ele também está à frente da plataforma on-line Transforma Brasil, que conecta organizações de transformação social, fazendo a ponte entre quem pretende ajudar, como doador ou voluntário, e quem executa as ações.

Em 2020, o Novo Jeito, que começou com um trabalho de assistência emergencial às vítimas das enchentes da Mata Sul pernambucana em 2010, completou dez anos. De lá para cá, foi criado o Transforma Recife, que se replicou no País inteiro e hoje conta com 5 mil projetos e 1 milhão de voluntários cadastrados.

Já o Porto Social, sediado na Ilha do Leite, área central do Recife, foi implantado em 2016 e, desde então, ajudou a montar 350 negócios sociais. O programa de incubação dura doze meses e todo ano a aceleradora abre um edital de inscrição. As ideias que estiverem menos adiantadas podem passar ainda por um período de pré-incubação. Na última seleção, de 2019/2020, dos quase 700 inscritos, 85 foram selecionados: 50 para a incubação e 35 para a pré-incubação.

Para Fábio, isso demonstra que o empreendedorismo social está crescendo. “Nós estamos conectando as empresas aos voluntários. Ou seja, quem faz trabalho voluntário passará a ter mais chances de contratação do que quem não faz”, celebra, citando dois incentivos promovidos pelo Transforma Brasil. “Ela emite o currículo social da pessoa (cadastrada) e o certificado de horas extracurriculares para alunos de graduação”.

Uma novidade que demonstra esse crescimento será a inauguração de um “shopping social”, um espaço que congregará diferentes instituições em um imóvel de quatro andares e 2.500 m² cedido pela Prefeitura, na Rua do Bom Jesus, Bairro do Recife. O empreendimento, previsto para ser aberto em março, ainda não foi batizado oficialmente, mas pode se chamar “Casa da Solidariedade” ou “Casa do Empreendedorismo Social”.

“O conceito é que seja o primeiro mall social do Brasil, conectando todos os projetos do nosso ecossistema e quem ainda não está envolvido com o voluntariado. Também vai levar serviços para comunidades vulneráveis, nesse caso, a do Pilar”, explica Fábio Silva.

O trabalho, que se frutificou a partir do Novo Jeito, é reconhecido por parceiros importantes para o, hoje, presidente do Porto Social. Entre os apoiadores, está o arcebispo de Olinda e Recife, Dom Fernando Saburido.

“O voluntariado é uma força que vive essa responsabilidade de irmãos e por isso é tão importante, ainda mais nesse período de pandemia, quando tantos passam por imensa necessidade, inclusive do mais básico, que é o alimento para sua sobrevivência”, considera o líder católico. “Graças a Deus, organizações não governamentais, grupos, movimentos e associações fizeram chegar à Arquidiocese cestas básicas para distribuição nas comunidades carentes”.

Professor Guilherme Araújo com os alunos da APAE Fitcamp Sports (Foto: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco)

Das quadras para o mundo
Entre os projetos incubados pelo Porto Social, está a Associação de Pais e Amigos (APAE) Fitcamp Sports, que concede bolsas a jovens atletas de basquete. Os alunos contemplados têm entre 13 e 17 anos e vêm de comunidades do Grande Recife. O projeto, que hoje atende cerca de 85 adolescentes, sendo 40 bolsistas, funciona da seguinte forma: as famílias que puderem arcar com a mensalidade do curso cobrem os custos dos estudantes de baixa renda.

A associação conta com parceiros como o Colégio Salesiano, que fornece espaço para as aulas de algumas turmas, e o Sport, que absorve parte dos jogadores para participar de competições de basquete pelo clube.

“A nossa incubação está terminando agora e a gente está se estruturando. A gente não quer só oferecer o esporte pelo esporte, mas oferecer um treinamento diferenciado e um acompanhamento psicológico”, afirma o professor Guilherme Araújo, um dos idealizadores do projeto. Entre os planos do grupo, está a criação de um centro na comunidade de Caranguejo Tabaiares, na área central da Capital pernambucana.

Em seis anos de atuação, o projeto revelou talentos. É o caso do estudante Gabriel Ferreira, cuja pouca idade, 14 anos, contrasta com os seus mais de 2 metros de altura. Morador do bairro do Nobre, de Paulista, na Região Metropolitana, foi se destacando no basquete que o ala armador chamou atenção e recebeu um convite para jogar na Alemanha. Está na expectativa para viajar em janeiro. “A ansiedade é enorme. O basquete me ajudou e quero chegar à NBA [Federação Americana de Basquete]”, projeta.

Colega de Gabriel, jogando de pivô, Pedro Henrique Amorim, 15, do Curado, Jaboatão dos Guararapes, foi chamado por um time de Campinas, em São Paulo. “Vou fazer o teste, ver a estrutura”, diz o jovem, que conseguiu o convite gravando vídeos. “Estou muito ansiso e feliz. O basquete é o meu lazer. Quando chego aqui, esqueço todos os problemas. E quando eu estiver bem de condições financeiras, quero ajudar outras pessoas”, conta.

Gabriel (à direita) e Pedro Henrique receberam convites para jogar na Alemanha e em São Paulo (Foto: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco)

Engajando na ponta
A diferença se vê no dia a dia, como se pode perceber pelas histórias dos que recebem assistência. Fabiana Soares, 39, que o diga. “Não dá para ficar em casa de braços cruzados, esperando as coisas acontecerem”, afirma.

Ao trazer a filha Jamile Vitória para ser atendida pela Aliança de Mães e Famílias Raras (Amar), uma das instituições que participam do Transforma Brasil, a dona de casa da Ilha Joana Bezerra se apaixonou pelo projeto, que funciona no Parque Santos Dumont, em Boa Viagem. “Entrei como mãe, trazendo minha filha para as terapias, e hoje sou voluntária”, conta. A organização oferece apoio às pessoas com síndromes raras, doenças que atingem um a cada mil nascidos vivos.

Jamile nasceu com mielomeningocele, hidrocefalia e paralisia cerebral, entrou no serviço aos 5 anos e hoje é uma pré-adolescente de 11 que apresenta muitos avanços na sociabilidade e nas habilidades motoras. Fabiana expressa a enorme gratidão que tem pela instituição, engajando-se como pode nas atividades do grupo.

“Até entrar, vivia desassistida. Aqui a gente tem acompanhamento com psicológica para ela e para mim, acupuntura, fisioterapia para ela. Sem contar a roda de conversa com as outras mães”, diz.

Criada há sete anos, a Amar atende, atualmente, 420 famílias de todo o Estado. A presidente da instituição, Pollyana Dias, explica que os serviços são diversos. “Desde entrega de cestas básicas e remédios a atendimento jurídico e de saúde, e isso tudo no modo voluntário”, lembra.

Na visão dela, o Transforma serve de ponte para encontrar novos parceiros. “A gente publica quando tem uma necessidade. Isso faz com que nosso nível de alcance seja maior, levando as ações da Amar para o mundo”, observa.

Projeto Ritmo do Coração atende comunidade de Bola na Rede, na Zona Norte do Recife (Foto: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco)

Outra ONG que se beneficia com a plataforma é o projeto Ritmo do Coração, na comunidade de Bola na Rede, localizada no bairro da Guabiraba, Zona Norte do Recife. A organização, que começou oferecendo aulas de zumba para mulheres, ampliou o leque de serviços.

“Temos curso de informática, qualificação profissional, um banco de currículos que direcionamos para as empresas quando precisam, aulas de taekwondo, funcional e crochê. E temos um grupo de mulheres empreendedoras”, enumera a coordenadora Walkiria França. Segundo ela, as doações cresceram 80% desde que aderiu ao Transforma. “Hoje o projeto é conhecido e reconhecido e eu digo que a Bola na Rede voltou a viver”, diz.

Uma das beneficiadas é a artesã Vilma Maria Rufino, 47, que integra o grupo de empreendedoras do projeto. Antes, ela trabalhava no setor administrativo de uma empresa e, com um problema de saúde, teve depressão.

Em busca de uma qualidade de vida melhor, pediu demissão e agora vive das peças de crochê e do artesanato com material reciclável. Também participa das sessões de zumba, é voluntária da ONG, dando aulas de crochê para idosos e adolescentes, e, na pandemia, confeccionou máscaras para toda a vizinhança. “Sou dona de mim mesma, posso dizer assim”, ressalta.