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Muito além da aula on-line, modelo híbrido busca a personalização do ensino

Primeira reportagem de série sobre as mudanças da educação na pandemia mostra o conceito por trás do uso de tecnologias digitais na prática pedagógica.

Ensino - Rafael Furtado/Folha de Pernambuco

O professor explica as anotações no quadro diante de uma câmera. Por trás do equipamento de captação de áudio e imagem, apenas o ar, micro-organismos e, vez ou outra, animais do porte de uma formiga ocupam as filas de bancas e carteiras da sala de aula. Os alunos, que, não faz muito tempo, lotavam aquele espaço, acompanham tudo de casa, vendo, ouvindo, falando e digitando pela tela do celular, tablet ou computador.

Essa cena ficou marcada ao longo de 2020, o ano em que o novo coronavírus se espalhou pelo mundo com uma virulência assustadora. A necessidade de fechar as escolas para evitar a contaminação de crianças, jovens, professores, funcionários, gestores e familiares, incluindo aí pessoas do grupo de risco, como os idosos, criou um cenário de restrições que exigiu adaptações, antecipando mudanças que já vinham sendo implementadas, ainda que a passos mais lentos.

As tecnologias digitais, que, nas últimas décadas, revolucionam todos os setores da economia, atingem em cheio a educação. E, nesta pandemia, um termo que expressa um conceito pedagógico entrou no vocabulário do senso comum: o ensino híbrido.

Desde que teve início a reabertura das escolas após o primeiro pico de Covid-19, no segundo semestre do ano passado, fala-se muito no hibridismo como uma estratégia de ensino que mescla aulas presenciais e on-line, com uma parte da turma em casa e a outra no colégio.

Mas não é bem assim. A implantação do ensino híbrido requer uma atenção e um planejamento que modifiquem a lógica tradicional de educar. Para funcionar bem e potencializar o processo de aprendizagem, deve ir além desse formato de transmissão de aulas.

“O ensino híbrido é um programa de educação formal em que o aluno aprende pelos meios on-line e presencial, com algum elemento de controle do estudante sobre o tempo, lugar, modo e/ou ritmo de estudo”, define o professor e consultor educacional em Metodologias Ativas, Fernando Trevisani.

“Isso quer dizer que a gente considera elementos do on-line, ou seja, o uso de tecnologias digitais, como fundamentais para o professor coletar dados sobre a aprendizagem dos alunos e, com isso, trabalhar e modificar o ensino presencial na escola, visando à personalização do ensino”.

Modelos e práticas
Para tornar mais claro como esse programa pode ser aplicado na prática do dia a dia, o especialista cita que há dois tipos de modalidades. O primeiro corresponde aos modelos sustentados e era mais utilizado nas escolas brasileiras antes da pandemia.

Já os modelos disruptivos requerem uma mudança mais radical no modo de configuração da própria unidade de ensino e tornaram-se mais comuns a partir das restrições impostas pela Covid-19.

“Os modelos sustentados conservam algumas das características da escola como a gente conhece, como a divisão por sala, turmas, o currículo desenvolvido e os espaços das aulas. Já os disruptivos rompem com algumas dessas características”, explica Trevisani.

Professor e consultor em Metologias Ativas, Fernando Trevisani (Foto: Diego Justo Dias/Divulgação)

Entre os métodos que podem ser usados, estão estratégias estudadas há algum tempo por pesquisadores da Pedagogia e da Educação, como a sala de aula invertida, que traz elementos de fora da escola.

Nele, o professor seleciona materiais como sites, vídeos, imagens, textos ou podcasts, e compartilha com os alunos para que uma atividade seja realizada antes do momento presencial da aula. Então, o professor utiliza o que os alunos estudaram previamente para desenvolver ações durante a aula presencial, como debates a partir do que os estudantes aprenderam em casa, exercícios em grupo, mapas mentais ou qualquer outro trabalho que possa ser realizado presencialmente com os alunos.

Outro modelo é a rotação por estações. A proposta consiste na divisão da turma em grupos, que se revezam em atividades com diferentes recursos, incluindo uso de tecnologias digitais, leituras e discussões, por exemplo.

Para o supervisor pedagógico e coordenador de Tecnologias Educacionais do Colégio Boa Viagem (CBV), Jaime Cavalcanti, a hibridização da educação é uma forma de democratizar a aprendizagem.

“Primeiro, porque garante a subjetividade do aluno, que vai ter o total exercício enquanto sujeito, e lhe desperta a autonomia e o protagonismo. Também é democrático para o professor, porque, no momento em que começar um trabalho híbrido, ele vai ter que pensar em propostas diferentes para grupos e alunos que têm estilos de aprendizagem diferentes”, considera. Entre as ferramentas usadas nesse processo, estão plataformas como o Google Classroom e as próprias redes sociais.

Depois do período apenas de atividades remotas, a transição do tradicional para o híbrido se intensificou na escola recifense que tem unidades nas Zonas Norte e Sul da Capital. Se, no ambiente on-line, foi possível dinamizar as atividades e explorar novos recursos, após a retomada, com a grade misturada de encontros presenciais e virtuais, os educadores têm a oportunidade de potencializar as práticas pedagógicas.

Uma mudança de cultura que vai dos pequenos da Educação Infantil aos jovens que se preparam para o Ensino Superior. “Independentemente de como a pandemia vai se comportar a partir de agora, a gente tem que ter esse compromisso. No Ensino Médio, nós temos objetivos mais claros, com o Enem e o ingresso nas universidades. Isso faz com que a gente dê um foco mais direcionado, sem perder essas questões”, afirma Jaime Cavalcanti.

Aluno do 3º ano do Ensino Médio no CBV, Fábio Unizzi sentiu a diferença ao longo desses meses de distanciamento social. O estudante de 17 anos, que pretende cursar Engenharia, descreve como impactante a transformação das aulas em relação às práticas de antes da pandemia. “As videoaulas a gente sempre usava como um recurso para estudar para uma prova, mas não estava acostumado com que aquilo fosse o recurso principal”, conta.

Quando as aulas eram apenas virtuais, ele diz que sentiu dificuldades no começo, mas conseguiu se adaptar. Já depois que voltou ao presencial, viu que as mudanças eram para valer. “Muitos professores, eu diria que 90%, passaram a utilizar mais slides e o Google Forms. A gente faz as questões pelo celular e depois articula com o professor”, diz.

Fábio também se vê agora mais acostumado ao on-line. “Sinto que isso melhorou meu desempenho e agora, na reta final, diante desse aumento de casos de Covid, até preferi ficar em casa porque eles estão conseguindo fazer de uma forma que seja dinâmico e não ficar parado em frente ao computador, pensando em outras coisas”, observa.

Fábio Unizzi, 17, viu modelo de ensino mudar enquanto se prepara para o vestibular de Engenharia (Foto: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco)

Ensino e inclusão
Em um mundo hiperconectado, onde os estímulos são inúmeros e instantâneos, manter a atenção do aluno na aula de forma que ele se engaja nas atividades e discussões é um desafio cada vez maior para o professor. Por isso, em vez de tentar restringir o uso da tecnologia pelos estudantes - o que era bastante comum nos primeiros anos da “era digital” -, os educadores começaram a perceber que os dispositivos eletrônicos podem ser grandes aliados da prática escolar.

Professora do Ensino Fundamental no Colégio Fazer Crescer (CFC), na Zona Norte do Recife, Karina Silva conta que não foi fácil fazer os encontros on-line com os estudantes mais novos. Mas, se, por um lado, a pouca idade indica falta de maturidade para adequar o comportamento, por outro, ela facilita a adaptação a uma nova cultura educacional.

“Eles têm a vantagem de serem de uma geração que já nasceu no digital, então a transição acaba sendo mais tranquila. Acredito que foi mais sofrido para os professores”, pondera. “Lidar com o novo e se abrir para essa realidade, estudar comunicação, oratória, edição de vídeo, tudo isso numa dinâmica muito rápida”.

A professora diz que divide as aulas entre momentos on e off-line. “Usamos todos os aplicativos que o Google oferece, temos as propostas off-line sem a intervenção do professor e, dentro isso, as metodologias ativas. Uma que eu gosto muito de usar é a sala de aula invertida”, comenta, ressaltando o desafio de manter o aluno motivado.

“Nós disputamos com os youtubers, os influencers, os desenhos animados. E qual é a dinâmica deles? São falas mais rápidas, muito visual, tem que ter imagem e som. Quando optamos por trabalhar com metodologias ativas, isso traz para a aula o aluno, que vai querer expor ao professor o que descobriu”, defende.

A personalização, inerente aos princípios do ensino híbrido, deve se refletir, ainda, na inclusão dos alunos com deficiência cognitiva.

“O modelo híbrido precisa ser adaptado às necessidades de todos os alunos, já que a gente entende que todas as crianças aprendem de maneiras diferentes. Algumas são visuais, outras, auditivas, outras, cinestésicas. A gente tem que adaptar o material e a aula de acordo com a necessidade. Nós trabalhamos com um planejamento geral, mas as atividades são trabalhadas de maneira direcionada”, explica.

Mãe de uma criança com autismo, a professora universitária Anna Karina Xavier, 49, assiste ao desenvolvimento do filho, Matheus, 9, em meio a essa transição. Até o ano passado, o menino estudava em um colégio particular, mas há três meses está em uma escola da rede municipal, a Padre Antônio Henrique, no Centro da Capital.

Em junho de 2020, antes ainda da retomada do ensino presencial, ela conversou com a Folha de Pernambuco e narrou as dificuldades que sofria para fazer o garoto participar das atividades remotas.

Agora, Anna sente que o acolhimento da nova unidade o ajudou a se adaptar bem aos recursos tecnológicos e espera que o novo ano letivo traga a atenção personalizada para que Matheus continue evoluindo não só na aprendizagem mas também na sociabilidade.

“Ele escreve o nome completo, conta até 30 e apresenta alguns encontros vocálicos”, afirma. “O modelo híbrido já existia e a pandemia solidificou isso. Não acho que vá trazer prejuízos ou estranhamento para Matheus, porque eu vi que houve avanços”.

No sistema público, que abrange uma comunidade bastante diversa - só na rede estadual, são cerca de 600 mil estudantes -, a tarefa de implementar o ensino híbrido é ainda mais desafiadora.

A secretária-executiva de Desenvolvimento da Educação da Secretaria Estadual de Educação e Esportes, Ana Selva, define como prioritários para as ações a garantia de conectividade aos estudantes e o investimento na formação dos professores.

Nesse sentido, de acordo com a gestora, desde 2020, os alunos da rede recebem pacotes de dados de internet bem como são oferecidos treinamentos para os educadores por meio do portal Educa PE, plataforma que contém ainda um acervo de materiais para atividades pedagógicas.

As ferramentas do Google também são utilizadas para as aulas síncronas. “Em paralelo a isso, lançamos um documento orientador para as escolas sobre os modelos para trabalhar o ensino híbrido, porque existem muitas metodologias que você pode utilizar nesse processo”, lembra.

“Por exemplo, você pode ter grupos que vão estar na escola esta semana e, na próxima, em casa, e vice-versa. E você pode trabalhar com esses estudantes atividades diferentes, mas que se beneficiam”.