Por onde Belchior passou depois que deixou a família e os palcos?
"Viver é Melhor do que Sonhar", novo livro mostra os caminhos e os motivos de Belchior no exílio
Em dezembro de 2013, Belchior e a companheira, Edna Prometheu, estavam havia dois meses morando de favor na casa de um fã. Desde 2007, o cantor cearense vinha sumindo da vida pública e também da própria família, perambulando pelo sul do Brasil e pelo Uruguai.
Naquele fim de ano, o professor de filosofia que o hospedara tinha uma viagem marcada para a Europa com a mulher. Deixaria Belchior e Edna com a filha adolescente por alguns dias, até que se deparou com uma reportagem da revista Época.
"A divina tragédia de Belchior" trazia uma investigação do exílio do cantor e revelava a existência de dois mandados de prisão contra ele, em razão de processos de pensão alimentícia movidos por sua ex-mulher. Com a revista em mãos, o hospedeiro pediu a Belchior que deixasse sua casa.
"Senti arrependimento", diz Marcelo Bortoloti, autor da reportagem e coautor de "Viver é Melhor do que Sonhar", novo livro em que ele e a jornalista Chris Fuscaldo buscam os caminhos e os motivos de Belchior no exílio. "Escrevi sem pensar nele. Pensei num tipo de sucesso que a matéria poderia fazer. Quando a gente é jovem, vai pisando nas coisas."
Sem casa para ficar, Belchior passou a noite de 24 de dezembro daquele ano no antigo prédio da rádio Santa Cruz, em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul. O lugar, onde havia trabalhado um radialista –fã que também já havia abrigado o cantor–, estava abandonado e vazio. O casal tinha que ir até a casinha dos fundos, onde ficava o vigia, para usar o banheiro, e dormia em um colchão ganhado.
No livro, Bortoloti e Fuscaldo chamam a reportagem de 2013 de "mesquinha e sensacionalista". Mas ela foi o pontapé inicial do trabalho da dupla, que desde 2015 vem perseguindo os passos do artista.
Em 2017, Belchior morreu depois de quase dez anos dessa vida às sombras que ele havia escolhido levar desde que foi abandonado gradativamente a rotina de shows, o escritório, o apartamento e o carro em São Paulo. Em 2007, se separou da ex-mulher, passou a morar com Edna e fez o último contato com a família. Em 2009, partiu de vez para o Uruguai.
Nesse período, correu da imprensa e da Justiça, fez dezenas de amigos, viveu num acampamento de agricultores, numa espécie de comunidade hippie e até num mosteiro. Também deu incontáveis calotes, deixou pertences por onde passou, lamentou o impeachment de Dilma Rousseff (PT), dedicou-se aos desenhos e nunca deixou de pintar de preto o bigode e os cabelos.
Um momento difícil do trajeto de Belchior foi quando ele dormiu embaixo da ponte. Era 2012, o cantor havia passado um tempo em um hotel na cidade uruguaia de Artigas, época em que conseguia pagar as contas com os cerca de R$ 40 mil mensais que recebia de direitos autorais, mas a Jutiça bloqueou suas contas.
Depois de cinco meses sem pagar o hotel, saíram de lá –ele e Edna– só com a roupa do corpo. Dormiram numa área pública debaixo da Ponte Internacional da Concórdia, que liga os dois países, e só no dia seguinte encontraram um novo fã a fim de abrigá-los.
"É quando a fuga vai virando uma tragédia", diz Bortoloti. "Caminhando naquela ponte, dava a sensação do desamparo dele naquele momento. Ele perdeu muita coisa e decidiu ir adiante no isolamento."
No exílio, apesar de ter gravado em 2011 um DVD nunca lançado com o pianista João Tavares Filho, Belchior mal pegou no violão. Ele tinha um medo –alimentado ou, pelo menos, externado por Edna– de ser reconhecido. O casal dizia estar sendo perseguidos pela Globo, que havia encontrado o cantor e o exposto em duas matérias no Fantástico, uma em 2009 e outra em 2012.
Curiosamente, não foi numa comunidade alternativa de jovens no centro de Porto Alegre a única vez que Belchior cantou para hóspedes. O cantor, que foi seminarista, só soltou a voz para as freiras.
As mais velhas das irmãs beneditinas no Mosteiro da Santíssima Trindade, em uma montanha perto de Santa Cruz do Sul, sequer conheciam Belchior. Durante alguns dias, à noite, contudo, ele pegou o violão para tocar e cantar "Paralelas" e alguns de seus sucessos gravados por Elis Regina. Belchior e Edna viviam prometendo um retorno triunfante aos palcos, motivo pelo qual recusavam todas as propostas para que ele tocasse e ganhasse dinheiro. Ele recusou uma proposta milionária para participar da propaganda de uma marca de carros que tinha um modelo retornando às lojas.
"Os fãs queriam ter o ídolo um pouco pra eles. Quando viam que ele não ia cantar, que a relação era de ser humano, mandavam embora", diz Fuscaldo.
As dívidas haviam tornado a volta de Belchior um problema. Mas a falta de movimentação do cantor, que passava os dias lendo, desenhando ou só se escondendo, despertava a desconfiança dos hóspedes –quase todos fãs do artista.
No livro, Fuscaldo e Bortoloti levantam hipóteses. Belchior poderia ter alguma doença, estar com vergonha, depressão, talvez tivesse um desejo franciscano de buscar o recolhimento, mágoa com a mídia ou quisesse compensar a curta obra que deixou entrando para a história de outra maneira.
Uma dessas hipóteses atribui o exílio a Edna. Era ela quem dizia os "nãos", assumia as brigas e dedicava a vida para cuidar do cantor. Ele nunca contrariava a companheira, que acumulava calotes, tinha habilidade para despistar repórteres e ganhou a fama de uma Yoko Ono responsável por desvirtuar a trajetória de sucesso de um ídolo.
"Ela tentava organizar eventos, mas não conseguia. Não é uma Paula Lavigne. E nem uma Yoko Ono, que aliás não é culpada de nada também. Belchior quis fazer tudo isso."
No fim, Belchior acabou como uma figura ainda mais mítica depois do exílio –e de sua morte. "Ele sai do jogo do mercado, da sociedade e faz um movimento quase anárquico de ruptura. Isso faz dele um herói. Ele vira um mito. E com certeza isso vai pesar na apreciação da obra", diz Bortoloti.