Educação

Indígenas venezuelanos refugiados farão universidade no PA

UFPA, por meio do Processo Seletivo Especial da instituição, que ofertou 24 vagas para imigrantes, refugiados, asilados, apátridas e vítimas de tráfico de pessoas

Indígenas venezuelanos aprovados na UFPA - Ascom Funpapa

Maria Virginia Morales adora rios. Quando olhou o Guamá, que banha a orla do campus da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém, sentiu saudades de casa.
 
"Lá onde eu morava o nosso povo ficava na beira de um rio igual a esse e dele nós vivíamos. Eram aproximadamente 400 famílias. Muita gente mesmo. Com o tempo foi diminuindo, diminuindo. Não dava mais para ficar", conta a mais nova caloura da universidade.
 
Ela e outros cinco refugiados venezuelanos da etnia Warao foram aprovados no vestibular e começam, em 2021, uma nova jornada.
 
Todos conquistaram uma vaga na UFPA por meio do Processo Seletivo Especial da instituição, que ofertou 24 vagas para imigrantes, refugiados, asilados, apátridas e vítimas de tráfico de pessoas, para estudantes da Venezuela, Gana, Haiti, Congo, Benin e Costa do Marfim.
 
Desde 2014, os Warao, que habitam o delta do rio Orinoco no nordeste venezuelano, vivem uma diáspora. Quatro mil deles já entraram no Brasil, segundo a ONU.
 
Ler o nome na lista de aprovados fez Maria Virginia esquecer por algumas horas todos os percalços que superou desde que deixou o vizinho sul-americano.
 
"Foi um momento de muita alegria porque estou realizando um sonho. Infelizmente eu não tive a oportunidade de realizá-lo na Venezuela, que era o certo. Estar aqui e receber uma oportunidade como essa é um recomeço para a minha história", afirma ela, com a filha Elisabete, de cinco meses, no colo.
 
Além da felicidade de ser aprovada para a graduação de pedagogia, Maria Virginia tem outros motivos para comemorar. Dois irmãos dela também conseguiram uma vaga.
 
"Nossa trajetória não tem sido fácil, mas desde que cheguei em Belém e consegui me estabelecer, sonho em estudar mais. Fiz o ensino médio na Venezuela e agora continuarei meus estudos", diz Francelino.
 
Ele, Maria Virginia e o irmão Eliomar traçaram um longo caminho até ficarem, de vez, na capital paraense. Como a maioria dos Warao, cruzaram a fronteira a pé, passaram por Boa Vista, Manaus, Santarém e, enfim, Belém.
 
Roisdael Calderon, de 37 anos, percorreu a mesma rota. "Foi uma luta intensa, pela sobrevivência mesmo. Cada ajuda, cada comida, cada conversa, tudo me trouxe até aqui. A luta agora é outra, que é a luta pela educação, pois são os estudos que vão garantir que estejamos incluídos na sociedade", diz ele.
 
Calderón entende que a conquista é mais que uma vitória individual, porque pode inspirar outros refugiados em Belém.
 
"Alguns, tristemente, não foram aprovados, mas no próximo vão tentar de novo. Seguiremos lutando. Sabemos que não serão quatro anos fáceis, mas estar na universidade junto aos brasileiros nos concede um papel de protagonismo que não tínhamos", afirma.
 
Nas ruas da capital paraense, é bastante frequente ver os Warao atuando como pedintes nas ruas, inclusive as crianças.
 
Estimativas apontam que há pelo menos 450 deles na cidade, mas, de acordo com a prefeitura, apenas 166 estão no abrigo localizado no bairro do Tapanã. Lá eles recebem o apoio de entidades como a Fundação Papa João Paulo II, ONG Aldeias Infantis e voluntários da causa.
 
Warao significa "povo do barco", o que tem tudo a ver com Belém do Pará, uma cidade ribeirinha. Ildebrando Moraleda diz ter achado até o vento na orla da UFPA parecido com o da comunidade indígena dele.
 
"É o sol, é o vento, é a floresta. As casas de madeira na margem e esse costume de comer o que o rio dá", diz Ildebrando, que vai cursar letras com habilitação em espanhol.
 
Para ajudar na comunicação, os refugiados têm a ajuda de José Albarran Lopez, que trabalha como intérprete no abrigo da prefeitura. Ele é de Caracas e foi aprovado no curso de direito na UFPA.
 
"Desde que soubemos desse processo seletivo, sabíamos que não dava para deixar a oportunidade passar. Agarramos. Foi um trabalho árduo, pois para eles tudo é muito novo. Mas eles conquistaram isso pela própria determinação", comemora.
 
Lopez lamenta o momento pelo qual a Venezuela passa e lembra que, na década passada, tudo era mais barato nas prateleiras dos supermercados. "De repente, tudo ficou 30 vezes mais caro e a população pobre ficou sem assistência para o básico. Imagine os indígenas. É desolador", desabafa.
 
Os Warao são o segundo maior grupo étnico do país, com mais de 48 mil indígenas distribuídos nos estados de Monagas, Sucre e Delta Amacuro.
 
Apesar de serem um "povo do barco", muitos caminharam a pé por semanas para fugir do caos na Venezuela, onde a pobreza extrema já beira 80% da população.
 
"Ficou difícil até para comprar roupas, calçados. Temos muitos parentes lá e nunca recebemos notícias positivas, boas. É uma situação triste e não há um horizonte de melhorias", diz Maria Virginia, cabisbaixa.


Eles afirmam, em uníssono, que não pretendem voltar para a Venezuela. O motivo são os frequentes relatos de miséria, sofrimento e perseguição de familiares indígenas.
 
Se ficar no Brasil significa conhecer novos costumes, um deles, bem inusitado, já foi apresentado para eles durante a comemoração do vestibular: os aprovados receberam ovadas e, alguns deles, tiveram seus cabelos raspados.
 
"Estou animado para começar. Será que vou estudar de frente para o rio? Ainda preciso descobrir onde vai ser minha sala", diz Ildebrando, meio preocupado, meio aliviado. "Mas só no primeiro dia de aula".