Gastronomia

Leite condensado é ingrediente onipresente na doçaria brasileira

Seja no campo político ou culinário, esse é um ingrediente que, há tempos, gera fascínio no brasileiro

Leite condensado na gastronomia brasileira - Foto: Ed Machado/Folha de Pernambuco

Há poucos dias, a palavra leite condensado entrou no trending topics do Twitter no Brasil, estimulado pelos gastos alimentícios do governo federal em 2020, que girou em torno de R$ 1,8 bilhão. No carrinho de compras, além de ervilha, iogurte e batata-frita, chamou atenção os mais de R$ 15 milhões voltados para leite condensado. Entre memes na internet e discussões acaloradas por todos os lados, eis uma polêmica que também pode ser vista pelo seu contexto gastronômico. Afinal, teria o brasileito um fetiche culinário antigo por esse produto?
 


Do ponto de vista afetivo, é fácil encontrar adultos que passaram a infância ansiosos para o momento de colocar o dedo numa lata cheia de leite condensado. O tempo passou, a dieta restringiu, mas a vontade, hoje quase criminosa de abrir a geladeira de madrugada e fazer aquele furinho , persiste em muita gente. A maioria nem assume. Menos ainda aceita colocar nome e sobrenome nesta reportagem, atestando um pequeno delito.

Segundo Gabriel Medeiros, psicólogo e Mestre em Saúde Mental, a recusa, em algumas situações, tem a ver com questões emocionais ligadas aos dias de hoje. “O doce, de maneira geral, tem a capacidade de ativar o neurotransmissor dopami­na, que traz a sensação de bem estar e relaxamento. Pessoas ansiosas e deprimidas, apresentam desregulação para mais ou menos desse neurotransmissor. Então, esse tipo de desejo passa a ser comum”, diz, ao se referir na questão patológica. Enquanto a vontade não se tornar corriqueira, não há problema.


É feito de quê?
O termo condensado não quer dizer que o leite passa por um processo físico chamado condensação, pois este é um nome que se relaciona à passagem do estado gasoso para o líquido. E esse não é o caso. Na verdade, ocorre o aumento da concentração do leite de vaca, isto é, há uma diminuição da quantidade de água, por evaporação, e aumento dos componentes sólidos, como os açúcares. Em escala industrial, é o suficiente para se dar início a etapas como filtração, pasteurização, centrifugação e outros.  


Alimento ou não?
O Brasil está entre os maiores con­sumidores do mundo, com uma estimativa de mercado que ultrapas­sa as 200 mil toneladas por ano. Tu­do isso, impulsionado pelas receitas em que se incorporou facilmente ao longo do tempo. Ao ser questionada na sua página no Twitter sobre este ser um alimento ou não, a idealizadora do Panelinha e apresentadora de TV, Rita Lobo, definiu: “usado co­mo ingrediente de uma sobremesa ca­seira, servida depois de um almo­ço com arroz, feijão, legumes, verduras e um pouco de carne, é comida de verdade. Substituindo uma refei­ção, direto da lata, aí, não. Enten­de?”, disse, depois de falar a importância de se respeitar um padrão alimentar tradicional, simbolizado por itens naturais e nutritivos.


Tradição culinária 
Quem lida com gastronomia, defende seu uso na doçaria na intenção de promover melhor textura e palatabilidade ao produto. Razão para qualquer pessoa perder a cabeça em sobremesas clássicas, como pudim, sorvete, torta, brigadeiro e até arroz-doce. Segundo a Adriana Arregui, Instrutora de Confeitaria do Senac-PE, a força na produção doméstica é tanta, que ganhou inúmeras variantes de receita.

Brigadeiro na lista de possibilidades (Foto: André Nery/Folha de Pernambuco)



“Existe a palha italiana, os doces de tabuleiro. As cocadas, por exemplo, era um doce dos tempos da escra­vidão. Incialmente, feito com açú­car e coco. Hoje, leva leite condensado, assim como o pé-de-moça. Já o pé-de-moleque tem açúcar e amendoim”, explica. Ainda segundo a especialista, é preciso ler o rótulo e procurar a quantidade de a­çúcar de cada marca, a fim de inserir o percentual ideal para a receita. 

“Algo muito nosso, porque a clássica confeitaria francesa não tem essa utilização. Vemos o uso de creme de leite e açúcar, que foram sendo substituídos aqui pelo leite condensado. Uma tartelete de morango e limão, por exemplo, tem ba­se francesa, mas há uma releitura com o tal ingrediente”, completa Adriana. Técnicas à parte, o paladar nacional tende o doce. Tanto que, embora a loja Cake & Bake tenha itens com técnicas e ingredien­tes de fora, o tal creme espesso e a­ma­relo não pode sair da lista de com­pras. Em média, a casa gasta cer­ca de 250kg de leite condensado por mês em cada loja, sendo uma no Shopping Recife e outra no RioMar.

Cake e Bake: leite condensado no preparo do bolo branco (foto: Ed Machado/Folha de Pernambuco)



“O risco é que ele padroniza a confeitaria. Outras bases são trabalhosas, mas dão mais personalidade. É preciso saber dosar. Tirar o melhor, sem se limitar a ele”, defende a socia da Cake & Bake e chef patissière Paula Ardanza, reforçando ainda que, em produção industrial, o foco é sua não cristalização. “Já em casa, não tem problema. Quem resiste a doce como esse?”, provoca.  
 

Da guerra ao consumo doméstico


Os registros históricos dão conta de que o americano Gail Borden, na tentativa de desidratar o leite comum, descobriu que, antes de ele se transformar em leite em pó, virava um leite condensado. O produto foi então patenteado em 1856, mas só ganhou reconhecimento durante a Guerra Civil America e Segunda Guerra Mundial.

“Eles usavam para levar aos campos de batalha, por conta da comodidade, por ser uma latinha, e ter alto valor calórico. Só uma embalagem soma em média 1.300 calorias. No entanto, quando terminou a guerra, não tinha mais utilização, chegando aos supermercados com campanha para que as donas de casa conhecessem o produto”, resume a confeiteira Adriana Arregui.

Não demorou muito para desembarcar na Europa, onde o açúcar já representava, em algumas regiões, uma força econômica e culinária, por meio de sobremesas. Os doces já faziam parte das mesas européias desde o século 14. Ainda mais na França, de onde saiam livros de receitas dedicados à confeitaria e toda a complexidade das técnicas clássicas de patissiére. 


Chegada ao Brasil
Depois de alcançar a Europa, chegou ao Brasil em 1890, importado da Suíça, onde era fabricado até então. O item era então chamado de “Milkmaid”, um nome difícil de ser pronunciado, e logo batizado de leite moça, que tempos depois se tornou oficialmente uma marca conhecida. A força açucareira do Brasil, com o paladar acostumado ao doce das preparações, permitiu que o produto ganhasse uma força democrática. Era uma época em que a população incorporava referências estrangeiras, com o olhar de uma nova república.

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Tanto que, no ano de 1945, a famosa história do candidado à Presidência da República, o Brigadeiro da Aeronáutica, Eduardo Gomes, é um capítulo importante nessa produção culinária. Para ajudá-lo nas eleições daquela época, apoiadoras misturaram chocolate ao leite condensado, criando o produto, como se conhece hoje, na intenção de arrecadar fundos de campanha. Logo, as variantes de preparação tomaram conta, mas sempre predominou a junção do chocolate e o creme derramado direto da lata sobre uma panela em fogo baixo.

Era um período em as mulheres viviam em casa, testando receitas para consumo próprio e de toda a família, em especial dos filhos pequenos. Em termos de sobremesa, o que antes levava geva, ovo e açúcar passou a receber apenas o tal leite condensado, como símbolo de praticidade, textura e sabor. Segundo dados da Nestlé no Brasil, atualmente só a linha Leite Moça vende a cada segundo sete unidades do produto em território nacional.

De acordo com os números da empresa Nielsen Retail Index, no ano passado houve um boom de consumo, quando a categoria cresceu 15% em valor. Outro dado curioso é da Kantar Painel de Domicílios. Na comparação só com 2019, em 2020 a penetração nos lares brasileiros cresceu pelo menos 4%. Mesmo em tempo de pandemia, restrição e protocolos de saúde, a Nestlé afirmou para a reportagem que em algumas unidades a companhia registrou recorde de produção. Na cidade de Montes Claros, em Minas Gerais, onde Leite Moça é produzido, a fábrica reforçou o time de funcionários para uma quarta turma de operação e aumentou em 12 horas semanais o volume de produção.

Dados

Aumentou
14% das famílias brasileiras aumentaram o consumo de leite condensado, após o início da pandemia, segundo o Centro de Inteligência do Leite da Embrapa

No Brasil  
- O brasileiro compra em média 6,4 kg de leite condensado por ano
- 94% lares brasileiros consomem leite condensado
- 60% dos doces feitos pelos brasileiros são à base de leite condensado, que foi o primeiro item produzido pela Nestlé no Brasil, em 1921, na cidade de Araras – primeira fábrica da companhia no país
- A cada segundo, são vendidas 7 unidades de Leite Moça no Brasil
(Dados da Nestlé)

Pelo mundo
Quando o leite foi exportado para outros países, foram criados nomes associados à figura da camponesa com balde de leite. Em espanhol, por exemplo, ficou La Lechera.

Segundo dados da FAO, Há forte participação global de países com grande produção láctea, como Bélgica e Alemanha