Lava Jato adotou modelo 'pesque e pague' para obter informações da Receita, diz defesa de Lula
A defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) protocolou no STF (Supremo Tribunal Federal), nesta segunda-feira (8), um novo lote de mensagens da Operação Lava Jato.
Nele, ficaria evidente, segundo a defesa do petista, que os procuradores da força-tarefa de Curitiba "solicitavam clandestinamente informações protegidas pelo sigilo legal à Receita Federal e só formalizavam o pedido na hipótese de identificação de algo que pudesse interessar ao órgão acusador."
Os diálogos, aos quais os advogados de Lula tiveram amplo acesso autorizado pelo Supremo, mostram que os procuradores mantinham uma linha direta com o auditor fiscal Roberto Leonel, em busca de colaboração informal.
Leonel chefiou a área de inteligência da Receita em Curitiba até 2018.
Quando Sergio Moro virou ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, convidou Leonel para presidir o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras). Ele acabou saindo do governo antes mesmo de o ex-juiz deixar o cargo.
Na época da Lava Jato, os procuradores solicitaram ao auditor, por exemplo, informações sobre compras que a ex-primeira dama Marisa Letícia e os seguranças do casal teriam feito.
Em fevereiro de 2016, o procurador Januário Paludo escreveu em um chat para os colegas: "Dona Marisa comprou árvores e plantas no Ceagesp em dinheiro para o sítio [de Atibaia] com um cara chamado Nelson Suzanese BOX 5 ou BOX 9. Pedi para o Leonel ver ser tem nf [nota fiscal]."
O procurador Roberson Pozzobon responde: "Shoooou" [a escrita dos diálogos foi mantida em sua forma original].
No mesmo mês, o procurador Deltan Dallagnol sugeriu que Roberto Leonel pesquisasse declarações de imposto de renda de Elcio Pereira Vieira, conhecido como Maradona. Ele era caseiro do sítio de Atibaia .
"Vcs checaram o IR de Maradona? Não me surpreenderia se ele fosse funcionário fantasma de algum órgão público (comissionado)", disse. "Pede pro Roberto Leonel dar uma olhada informal".
Um outro diálogo, de agosto de 2015, mostra Deltan Dallagnol questionando se o colega Roberson Pozzobon já tinha entrado "em contato" com a Receita Federal "sobre os filhos do Bhrama [Brahma, apelido dado por eles a Lula]".
Os procuradores seguem conversando sobre Taiguara Rodrigues dos Santos, um sobrinho da primeira mulher de Lula que teria feito negócios vultosos na África com a empreiteira Odebrecht.
Deltan afirma: "Viu na imprensa do Taiguara, que era sobrinho do LULA que fazia varandas e está multimilionário fazendo obras pra Oddebrect na africa??".
Roberson se interessa pelo assunto do sobrinho, e responde a Deltan, sobre consultas à Receita: "Vou ver isso amanhã de manha Delta, quero pedir via Leonel para não dar muito na cara, tipo pescador de pesque e pague rsrsrs".
Um outro diálogo mostra o procurador Athayde Ribeiro Costa informando aos colegas que pedira a Leonel para averiguar se os seguranças de Lula tinham adquirido uma geladeira e um fogão em 2014 para equipar o tríplex que a empreiteira OAS reformou para o líder petista em Guarujá (SP).
"Pessoal, fiz esse pedido ao LEONEL em relacao ao fogao e geladeira", escreveu Athayde aos outros procuradores. Em seguida, ele posta no grupo a mensagem que tinha enviado ao auditor: "Leonel, boa noite. Se possível, tentar ver dps se os seguranças do LULA adquiriram geladeira e fogao da marca BRASTEMP no ano de 2014 que foram parar no apartamento. Os fornecedores devem ter sido a FASTSHOP ou WALMART. Será que conseguimos ver isso?".
O procurador enviou a Leonel nomes de oito seguranças que trabalhavam para Lula e duas lojas.
Não é possível saber, pelos diálogos, se os pedidos foram atendidos por Roberto Leonel. Uma das mensagens mostra, no entanto, que em pelo menos um caso o auditor repassou aos procuradores informações sobre pessoas que nem sequer eram investigadas pela Lava Jato.
Em maio de 2017, Leonel informou a Deltan que fizera uma representação contra os pais do ex-deputado Rodrigo Rocha Loures (MDB-PR) e preparava outra contra sua ex-mulher, que acabara de declarar uma conta na Suíça.
Aliado do então presidente Michel Temer (MDB), Loures fora afastado do exercício do mandato após ser flagrado carregando uma mala de dinheiro recebida de um executivo da JBS.
Loures era investigado pela Procuradoria-Geral da República, num caso fora da alçada de Curitiba. Mesmo assim, Leonel procurou Deltan após ser questionado por seu superior, o chefe da Coordenadoria de Pesquisa e Investigação (Copei), Gerson Schaan, sobre a representação.
"Ele quis saber pq fiz etc e se tinha passado está inf a vcs", disse Leonel, no dia 24 de maio. "Disse q NUNCA passei pois não tem origem ilícita suspeita !!! Por favor delete este assunto por enquanto", escreveu o auditor a Deltan.
As mensagens agora enviadas de maneira formal ao STF pela defesa de Lula já tinham sido obtidas pelo site The Intercept Brasil e analisadas e publicadas também pelo jornal Folha de S.Paulo em agosto de 2019, no que ficou conhecido como o escândalo da Vaza Jato.
Já naquele ano as publicações mostravam que a força-tarefa estabeleceu com o auditor Leonel uma relação de trabalho tão próxima que recorreu a ele para investigar hipóteses dos investigadores, sem que houvesse elementos objetivos para justificar o acesso a dados do fisco.
A legislação brasileira permite que o Ministério Público peça informações à Receita durante investigações, mas é necessário que seus requerimentos sejam formais e fundamentados. Em casos de pedidos muito abrangentes, é preciso obter autorização da Justiça, segundo advogados ouvidos naquela época pela Folha de S.Paulo.
"A 'Lava Jato', no entanto, longe de cumprir tais pressupostos, instituiu o modelo 'pesque e pague' segundo os próprios procuradores da República que atuaram na 'operação'", diz a defesa de Lula ao Supremo.
Os procuradores que integraram a força-tarefa de Curitiba não reconhecem as mensagens interceptadas como verdadeiras e afirmam que o material é oriundo de crime cibernético. Dizem ainda que ele vem sendo usado, editado ou fora de contexto, para embasar acusações e distorções que não correspondem à realidade.
Na época em que a Folha de S.Paulo publicou os diálogos, os integrantes da força-tarefa não comentaram as mensagens.
Mas afirmaram, por meio de nota, ser "perfeitamente legal -comum e salutar no combate ao crime organizado- o intercâmbio de informações entre o Ministério Público Federal e a Receita no exercício das funções públicas de apuração de fatos ilícitos de atribuição dos órgãos".