Brasil barra venezuelanos na fronteira com base em orientação inexistente da Anvisa
O Ministério da Justiça foi indagado em ofício enviado pela ONG Conectas Direitos Humanos sobre a discriminação contra pessoas vindas da Venezuela
O governo brasileiro está barrando a entrada por terra de qualquer pessoa proveniente da Venezuela, até aqueles que têm familiares no Brasil, alegando ser uma determinação sanitária da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. A Anvisa, no entanto, informou que nunca orientou o Ministério da Justiça a proibir a entrada de pessoas vindas de território venezuelano, em decorrência da pandemia de Covid-19.
A portaria atualmente em vigor, a 652 de 25 de janeiro de 2021, determina que estrangeiros de todas as nacionalidades estão proibidos de entrar por terra no Brasil, mas há diversas exceções: imigrantes com residência de caráter definitivo no país, aqueles que têm cônjuge, companheiro, filho ou pai brasileiro, e portadores do Registro Nacional Migratório (o antigo RNE).
As exceções valem para todas as nacionalidades, menos para pessoas vindas da Venezuela, que não podem entrar no Brasil por terra sob nenhuma hipótese. O Ministério da Justiça foi indagado em ofício enviado pela ONG Conectas Direitos Humanos sobre a discriminação contra pessoas vindas da Venezuela e confrontado com um parecer técnico da USP apontando que não havia base sanitária para barrar pessoas oriundas do país.
Em resposta, o ministério afirmou que a restrição está embasada em "recomendação técnica e fundamentada da Anvisa". Ainda segundo ofício, assinado pelo coordenador-geral de polícia de imigração, André Furquim, "para fins de controle de fronteiras, o que importa e prevalece é a nota técnica da Anvisa".
No entanto, questionada pela Conectas, a Anvisa afirmou que "as restrições a estrangeiros provenientes da República Bolivariana da Venezuela não constam em nenhum dos documentos apresentados pela Anvisa para subsidiar a tomada de decisão do referido Comitê".
Ainda segundo a resposta da Anvisa, "nas notas técnicas emitidas pela Coordenação de Vigilância Epidemiológica em Portos, Aeroportos, Fronteiras e Recintos Alfandegados (COVIG/GGPAF/Anvisa) não há recomendações no sentido de segregar qualquer país fronteiriço".
"O governo está usando a pademia como desculpa para barrar os venezuelanos", diz Camila Asano, diretora de programas da Conectas.
Segundo ela, a discriminação contra venezuelanos se soma a uma série de medidas do governo que estão retirando direitos dos migrantes, como a portaria 666 de 2019, que previa a possibilidade de deportação sumária, e o entendimento do Conare (Comitê Nacional para os Refugiados, ligado ao Ministério da Justiça) de que poderia indeferir pedidos de refúgio sem ao menos entrevistar o solicitante.
Ela aponta também para o fato de o governo ter autorizado arbitrariamente a entrada por terra pelo Paraguai, sem nenhum embasamento sanitário.
O governo editou diversas portarias na mesma linha desde março de 2020, quando começou a pandemia, todas restringindo entrada por terra. A partir de julho, turistas vindos de avião podem entrar. A entrada por terra é autorizada apenas pela fronteira com o Paraguai.
Procurado pela reportagem, o Ministério da Justiça afirmou que quem fala sobre esse assunto é a Casa Civil. A reportagem procurou a Casa Civil, mas a pasta não respondeu a email, telefonemas e mensagem por WhatsApp.
Segundo dados da Polícia Federal, houve redução significativa do número de venezuelanos entrando no país -em grande parte, devido às restrições pela pandemia de Covid-19. Em 2018, 227.437 venezuelanos entraram no país e em 2019, foram 236.410.
No ano passado, 47.682 venezuelanos entraram no Brasil, por terra e via aérea. Segundo o padre Paolo Parise, um dos coordenadores da Missão Paz, entidade que cuida de refugiados, pouquíssimos venezuelanos têm chegado até a missão, apesar de a situação na Venezuela estar muito difícil.
"Na prática, o venezuelano está proibido de pedir refúgio e de entrar no Brasil", diz Parise. Isso porque a portaria determina que qualquer estrangeiro que entrar no país de forma irregular está "inabilitado" para pedir refúgio. A imensa maioria dos venezuelanos tem poucos recursos e só consegue entrar no Brasil por terra, e não por via aérea, como a portaria permite.
Eles acabam entrando irregularmente e, por isso, ficam impedidos de solicitar refúgio. "Fechar para pessoas vindas da Venezuela é uma decisão política, é óbvio que estão tentando segurar o fluxo de refugiados venezuelanos entrando no país", diz Parise. "Hoje em dia, turista que vem de avião pode entrar, quem vem pela fronteira terrestre do Paraguai também, mas venezuelanos em situação muito vulnerável são impedidos."
Segundo João Chaves, coordenador do grupo de trabalho nacional da Defensoria Pública da União para Migrações, muitos venezuelanos entram de forma irregular e vão até a Polícia Federal tentar regularizar sua situação. Segundo ele, essas pessoas acabam saindo de lá com uma nota determinando saída obrigatória do país em 60 dias, sob pena de deportação, e pagamento de multa de R$ 100 por dia, até o máximo de R$ 10 mil.
A DPU já argumentou com o Ministério da Justiça que as condições são muito drásticas com populações vulneráveis da Venezuela, mas não adiantou.
"Existe um fluxo constante de venezuelanos na fronteira de Roraima, muitos estavam no Brasil trabalhando e agora não conseguem trazer os filhos, outros faziam tratamento de saúde em Boa Vista e não podem se reunir com a família", diz Chaves. O problema da inabilitação de solicitação de refúgio para pessoas que entram irregularmente atinge também cubanos e haitianos, populações vulneráveis que entram por terra.
O governo brasileiro determinou, em dezembro de 2019, que existe na Venezuela uma situação de grave e generalizada violação de direitos humanos. Com isso, agilizou a concessão de refúgio para os venezuelanos, e não é mais necessário fazer entrevista com o solicitante. Normalmente, o processo de avaliação de pedido de refúgio chega a levar três anos.
Segundo informações do Conare, houve 25.734 concessões de refúgio para venezuelanos (que já estavam em território brasileiro) em 2020, e 20.709 em 2019.