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'É dever com terra martirizada', diz papa Francisco sobre visita ao Iraque apesar da Covid

Ele havia justificado o cancelamento de suas viagens anteriores com o argumento de que sua consciência não permitiria que ele provocasse aglomerações, mas ao falar sobre a ida ao Iraque disse que se sentia na obrigação de manter os planos para essa "visit

Papa Francisco visita o Iraque - Vincenzo Pinto / AFP

A despeito de recentes ataques com foguetes e bombas e do aumento significativo de casos de coronavírus no Iraque, o papa Francisco iniciou nesta sexta-feira (5) a visita de quatro dias ao país -sua primeira viagem internacional desde o início da pandemia e a primeira vez em que um líder da Igreja Católica visita a nação de maioria muçulmana.

"Estou feliz de viajar novamente", disse ainda no avião o pontífice, que completou 84 anos em dezembro e já foi vacinado contra o coronavírus, assim como toda a sua comitiva.



Ele havia justificado o cancelamento de suas viagens anteriores com o argumento de que sua consciência não permitiria que ele provocasse aglomerações, mas ao falar sobre a ida ao Iraque disse que se sentia na obrigação de manter os planos para essa "visita emblemática".

"É um dever para com uma terra martirizada por muitos anos.", assumiu o pontífice. 

Os dois antecessores do papa argentino, Bento 16 e João Paulo 2º, tentaram organizar visitas ao Iraque, mas as viagens nunca se concretizaram, devido aos conflitos no país e a dificuldades de negociação com o governo local.

"Peço que acompanhem esta viagem apostólica em oração, para que ela ocorra da melhor maneira possível e dê os frutos que se esperam. O povo iraquiano nos espera", disse o pontífice na última quarta-feira (3).

De acordo com dados da Universidade Johns Hopkins, o Iraque vive hoje um de seus piores momentos da pandemia. Em 4 de janeiro, a média móvel de novas infecções era de 834,4 ao dia. Dois meses depois, nesta quinta-feira (4), o número registrado foi de 4.233,1 –o que equivale a um aumento de mais de 407% nos casos confirmados da doença.

A principal preocupação é com o risco de que a visita exponha a população iraquiana, que ainda não teve acesso aos imunizantes.

Questionado se a viagem neste momento era apropriada, o porta-voz do Vaticano, Matteo Bruni, minimizou o aumento das infecções no Iraque.

Ele também enfatizou que a população iraquiana é relativamente jovem -o que os tornaria menos vulneráveis a casos graves de Covid-19- e citou algumas das medidas adotadas para garantir a segurança do papa e das pessoas que quiserem vê-lo durante a visita, como as regras de distanciamento nos ambientes em que Francisco estiver presente e o fato de que, contrariando a tradição, o papa não fará desfiles em carros abertos.

Apesar das restrições impostas para que não se formassem multidões, centenas de pessoas se reuniram em pequenos grupos para tentar ver o papa em seu primeiro deslocamento no país.

Uma carreata com dezenas de veículos acompanhou Francisco em sua saída do aeroporto internacional de Bagdá. O pontífice, que normalmente insiste em usar carros simples e pequenos em suas viagens, foi conduzido ao palácio presidencial da capital iraquiana a bordo de um BMW à prova de balas e escoltado por outros veículos blindados.

O governo iraquiano deslocou milhares de agentes de suas forças de segurança para garantir que a estadia do papa transcorra sem imprevistos. Embora viva um período de relativa paz em comparação com os conflitos dos últimos anos, o Iraque foi alvo de ataques recentes que colocaram em xeque a decisão do pontífice de visitar o país.

Em janeiro, um ataque suicida, cuja autoria foi reivindicada pelo grupo extremista Estado Islâmico, matou 32 pessoas e feriu ao menos 110 em Bagdá. Na quarta-feira (3), dez foguetes foram lançados contra uma base aérea que hospeda forças dos Estados Unidos, em novo episódio de violência na capital iraquiana. Horas depois, o papa Francisco deu uma declaração reafirmando seu propósito de viajar ao país.

Nesta sexta, o primeiro compromisso do pontífice foi um encontro com o presidente do Iraque, Barham Salih. As boas-vindas oficiais contaram com tapete vermelho, apresentação de uma banda militar e uma revoada de pombos.

Francisco demonstrou dificuldade ao caminhar, indicando um possível retorno da mesma dor ciática que o levou a cancelar sua participação em eventos tradicionais de fim de ano no Vaticano.

No palácio presidencial, ele fez um apelo para que os iraquianos dessem uma chance aos pacificadores e criticou os interesses de facções e de forças externas que desestabilizaram o Iraque e toda a região.

"O Iraque sofreu os efeitos desastrosos das guerras, o flagelo do terrorismo e os conflitos sectários muitas vezes baseado em um fundamentalismo incapaz de aceitar a coexistência pacífica de diferentes grupos étnicos e religiosos", disse Francisco.

O presidente Salih agradeceu ao visitante por ter contrariado "as muitas recomendações para adiar" a viagem por causa da pandemia e disse que o fato de o papa ter insistido na ida ao país "multiplica o valor desta visita para o povo iraquiano".

Apesar de dar sinais de cansaço já em seu primeiro discurso, Francisco seguiu para o próximo ponto de seu roteiro de viagem: uma visita a uma igreja em Bagdá onde extremistas islâmicos armados mataram quase 60 pessoas em um atentado em 2010.

No local, o líder católico disse que as vítimas "pagaram o preço máximo por sua fidelidade ao Senhor e à sua igreja" e que suas mortes serão para sempre um lembrete de que "a violência e o derramamento de sangue são incompatíveis com os ensinos religiosos".

Francisco também reconheceu que a pandemia agravou os desafios pastorais, mas disse que as limitações não podem ser um obstáculo para a fé. "Sabemos como é fácil ser infectado pelo vírus do desânimo que às vezes parece se espalhar ao nosso redor", disse o papa, acrescentando à metáfora a afirmação de que a fé é uma "vacina eficaz".

Neste sábado (6), Francisco tem um encontro marcado com o principal clérigo muçulmano xiita do Iraque, o grande aiatolá Ali Al-Sistani. Aos 90 anos, o líder islâmico raramente é visto em público e não tem o hábito de receber visitantes, mas a ocasião histórica o levou a abrir exceções.

O compromisso, considerado uma tentativa de fortalecer o diálogo entre a Igreja Católica e o Islã, ocorrerá em Najaf, cidade sagradas para os xiitas -um dos dois principais ramos do islamismo, ao lado dos sunitas.

Mais de 95% dos iraquianos são muçulmanos, enquanto apenas 1% se identifica com as diferentes vertentes do cristianismo.

De Najaf, o papa deve passar pela cidade de Nassíria e partir para Ur, onde os textos sagrados dizem que nasceu o profeta Abraão, considerado um patriarca das três principais religiões monoteístas do mundo –o cristianismo, o islamismo e o judaísmo.

No domingo (7), Francisco viaja para Arbil, capital do Curdistão, região parcialmente autônoma em relação ao governo central do Iraque. Não está claro se as restrições impostas para a contenção do coronavírus durante a visita papal serão devidamente respeitadas, já que o líder católico deve realizar uma missa em um estádio esportivo com capacidade para milhares de pessoas em sua última noite no país.

Em entrevista ao jornal The New York Times, o padre Karam Qasha, um dos responsáveis pelo registro dos participantes da missa em Arbil, disse não estar preocupado com o risco de contaminação. Ele contou que vinha recebendo ligações diárias de pessoas querendo realizar o sonho de conhecer o papa.

Segundo o padre, porém, grande parte dos participantes já foi infectada pelo coronavírus e se curou, inclusive ele próprio. Qasha disse ainda que os fiéis de sua paróquia vinham rezando "todos juntos" e foram atendidos com um milagre. "O vírus quase desapareceu da minha cidade", disse.

Francisco também tem compromissos marcados em Qaraqosh e em Mossul, esta última um antigo reduto do Estado Islâmico, onde igrejas e outros prédios ainda carregam cicatrizes dos conflitos entre diferentes grupos armados que ascenderam após o vácuo provocado pela queda do ditador Saddam Hussein, morto em 2006.

O fim da viagem papal está previsto para a manhã de segunda-feira (8), quando Francisco deve voltar a Roma.