Mulheres que integram cargos diretivos no futebol desafiam machismo na luta por espaço
Ainda em número reduzido, integrantes de postos de liderança de clubes revelam como é árduo o caminho para reivindicação por equidade
A situação de desigualdade de gênero no Brasil tem inflamado cada vez mais a luta das mulheres em ocupar espaços predominantemente masculinos. Nas últimas décadas as mulheres têm pleiteado com maior intensidade os espaços que lhes cabem nas arquibancadas, quadros de arbitragem, comissões técnicas, entre outras esferas do futebol. No entanto, apesar dos avanços lentos, mas significativos, o número de mulheres que ocupam cargos diretivos no esporte ainda é escasso, conforme aponta pesquisa do IBGE e atesta um levantamento feito pela Folha de Pernambuco para abordar o assunto no Dia Internacional da Mulher, celebrado nesta segunda-feira.
O estudo "Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil" - divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) na primeira semana de março - aponta que, em 2019, as mulheres ocupavam apenas 37,4% dos cargos gerenciais nas empresas brasileiras. Nos esportes, a proporção é ainda menor. De acordo com um levantamento feito pelo jornal Metrópoles em 2019, somente seis mulheres ocupavam, à época, funções com poder de decisão nos 128 clubes das quatro divisões do campeonato nacional de futebol.
Uma análise das composições das gestões dos clubes que disputarão as séries A e B do Campeonato Brasileiro de futebol masculino em 2021 evidencia a predominância de homens nos cargos relacionados à gestão. A partir de informações disponibilizadas nos sites oficiais de 35 dos 40 clubes das duas principais divisões nacionais, constata-se que entre 433 nomes distribuídos entre diretorias e executivos e mostrados com destaque nas páginas dos clubes, apenas 10 são nomes de mulheres.
Soraya Barreto, pesquisadora e autora do livro Mulheres no campo - o ethos da torcedora pernambucana, aponta que esporte e sociedade são campos indissociáveis e atribui o “afastamento” da mulher do universo futebolístico a aspectos históricos. “O futebol foi construído em prol de uma pretensa virilidade. A narrativa de que o futebol é um esporte masculino foi construída em uma sociedade patriarcal, com extremas desigualdades e assimetrias entre homens e mulheres", atesta.
Na história recente, um decreto-lei, promulgado em 1941 (auge da ditadura do Estado Novo), proibiu a participação de mulheres em “desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”. A proibição, que reforçou o carácter masculino e heteronormativo atribuído ao futebol, vigorou até 1983. “Se observarmos a historicidade que envolve a mulher na cultura futebolística, vamos identificar um grande histórico de proibições e silenciamentos”, comenta Soraya.
Com a mercantilização do futebol e a popularização de termos como “clube-empresa” e “CEO” entre as gestões de clubes, o afastamento das mulheres dos cargos relacionados à tomada de decisão nos esportes torna-se ainda mais notável. “O mundo dos negócios ainda é masculino. Então se você coloca nessa receita o ‘empreendedorismo’ e o futebol, você vai ver que é tudo estruturado sobre uma percepção muito misógina e sexista. Se ainda estamos discutindo a compreensão da mulher e o gosto dela por futebol, ainda estamos muito longe de uma eventual equidade”, completa.
Nesse sentido, a pesquisadora também destaca que há uma exigência diferente para homens e mulheres que ocupam papéis estratégicos no futebol. “A mulher que ocupa cargos no futebol tem que se provar mais do que os homens. Em alguns casos, a mulher precisa se masculinizar para se fazer respeitar, porque é um universo que não aceita a figura feminina”, aponta Soraya Barreto.
“A mulher ainda está ‘atrasada’ em relação aos homens no futebol porque ela foi afastada de forma abritrária”, afirma a pesquisadora.
Entre os clubes da primeira divisão, nenhum conta com mulheres nas sessões destinadas ao detalhamento das gestões nos sites oficiais. Atlético Mineiro, Bahia, Corinthians, Fluminense, Grêmio, Internacional, Santos, São Paulo e Sport contam com mulheres nos conselhos deliberativos, órgãos que discorrem de forma coletiva sobre políticas de gestão, orçamentos, entre outras decisões estratégicas.
Para Soraya, as mulheres nos conselhos podem desempenhar papéis importantes na luta por novas conquistas, no entanto, o cargo de conselheira não se caracteriza como um posto de decisão. "Conselheiras têm papéis importantes, mas não se trata de um cargo de decisão. Ter mulheres conselheiras é um avanço, mas trata-se de um cargo consultivo, como o próprio nome diz", comenta a pesquisadora.
Apesar de não estar listada na composição do staff no site oficial, o Sport conta com a administradora Luana Moreno, que atualmente ocupa o cargo de gerente de futebol. Desde 2018, Luana lida com contratos e negociações relacionadas ao departamento de futebol do Leão.
Na Série B, Cruzeiro (chefes de marketing e de projetos incentivados), Londrina (secretária Geral do conselho de representantes), Remo (diretoras de patrimônio, responsabilidade social e do voleibol), Ponte Preta e Náutico (diretoras de operação de jogo e de responsabilidade social) têm mulheres em suas gestões.
A luta para reafirmar espaço
Há exatos três anos, no dia 8 de março de 2018, o Náutico anunciou a criação da Diretoria da Mulher, um departamento para garantir representatividade e respeito para as mulheres no ambiente futebolístico (e também fora dele). Na época, quem ficou à frente dessa campanha e despontou como a primeira diretora do clube foi Tatiana Roma. A história dela com o Náutico, entretanto, vem de muito antes. Filha de alvirrubro e sócia desde criança, a paixão de Tatiana pelo clube começou na infância e perdura até os dias atuais através de atuações administrativas dentro da gestão alvirrubra.
Atualmente, Tatiana ocupa o posto de Diretora de Operações de Jogos, sendo responsável pela parte operacional - como o público e ingressos - de todas as partidas que acontecem no estádio dos Aflitos. O cargo implica fazer articulações internas e externas, o que pode ser desafiador diante de um ambiente machista. Tatiana conta que nunca sofreu agressões explícitas, mas ao longo de sua trajetória já foi vítima de situações de machismo velado. "Você vê olhares, você sente como se sua palavra valesse menos… Querem falar com alguém superior a você para resolver alguma coisa”, revela.
Pouco a pouco, protagonizando uma luta diária e permanente, Tatiana conseguiu driblar os obstáculos impostos pelo machismo estrutural da sociedade e conquistar seu espaço no clube. “O futebol talvez seja o local de trabalho mais hostil à presença feminina. Por uma cultura machista própria do futebol e tudo que ele envolve. No começo, foi muito difícil me adaptar a isso”, afirma. A jornada da diretora evidencia o quão árduo é o caminho de reivindicação por um espaço feminino dentro de um ambiente essencialmente masculinizado. “Com o passar dos anos eu fui conquistando meu lugar, as pessoas passaram a me ver com outro olhar. E eu espero que isso cresça para que outras mulheres possam ser diretoras, possam trabalhar em clubes e não passar por aquilo que eu passei”.
Em Pernambuco, assim como na maioria dos clubes brasileiros, a participação feminina se restringe à composição dos conselhos deliberativos. No entanto, dos 818 conselheiros (titulares e suplentes) que hoje atuam nos três clubes de maior torcida no estado, somente 24 são mulheres. Proporcionalmente, o Náutico é o clube que possui mais mulheres em seu conselho, são 12 em um universo de 333 (considerando conselheiros ‘natos’ e 'eleitos'). Já o Sport possui apenas duas mulheres numa lista composta por 200 nomes, entre titulares e suplentes. Ambas as listas estão disponíveis nos sites oficiais dos clubes.
A proporção de mulheres no conselho do Santa Cruz é maior que a do Leão, mas é inferior à do Timbu. Em fevereiro, dez mulheres tomaram posse em um conselho composto por outros 326 homens. Entretanto, uma delas é a pedagoga Danielle Leal, que ocupa a segunda secretaria no deliberativo do Santa, um feito inédito na história do clube, que se prepara para adaptações institucionais que podem servir como uma abertura à participação mais efetiva de mulheres na gestão.
Os laços de Danielle com o Santa Cruz surgiram ainda na infância, desde então o Estádio do Arruda se tornou uma espécie de segunda casa. Entre viagens para acompanhar o clube e horas a fio dedicadas ao Santa, Danielle começou a se tornar o que ela chama de “torcedora crítica”, acompanhando de perto e questionando as decisões políticas tomadas no clube e passou a ser conselheira, mas se afastou por motivos pessoais e políticos. Em 2020, ela foi convidada a voltar ao conselho deliberativo e aceitou “por acreditar na importância simbólica” do ato. Dessa vez, Danielle fez história ao ser a primeira mulher a compor uma mesa diretora no clube, que possui uma história centenária.
Apesar de manter uma relação estreita com o Santa, a conselheira relata que sofre constantemente com insultos de cunho machista, mas procura não se deixar abalar. “É um ambiente hostil, mas não só para as que ocupam cargos nos clubes. Ser torcedora mulher é ser hostilizada sempre. Às vezes tenho que lidar com homens que, no meio de um bar, vêm me perguntar qual o nome do goleiro do meu time, se eu sei o que é um impedimento”, afirma Danielle.
“Para adentrar nesse meio machista a gente precisa ‘engolir muito sapo’. Já precisei ser machista, rir de piadas que me afetam, mas é uma coisa que não faço mais atualmente”, completa a torcedora, que cita a recente ascensão de movimentos organizados por mulheres nas arquibancadas - como as Coralinas, grupo de torcedoras que ocupa as arquibancadas do Arruda há mais de cinco anos - e crê numa mudança a longo prazo.
Caminhos
A jornada em busca de uma paridade de gênero no futebol está em curso, mas caminha a passos curtos, esbarrando nas adversidades impostas pelo machismo.
Soraya Barreto, também integrante do projeto Observatório de Mídia: Gênero, Democracia e Direitos Humanos, aponta que a iniciativa das mulheres que buscam espaços em ambientes cuja presença majoritária é masculina pode servir como exemplo.
Entretanto, Soraya afirma que a construção de um futebol mais justo e igualitário não pode ser dissociada de uma mudança na sociedade como um todo. Para ela, a escassez de mulheres no futebol - seja em cargos de chefia, nos conselhos deliberativos ou mesmo na composição das comissões técnicas - é uma das inúmeras representações de uma distorção que impacta a sociedade contemporânea.
“O futebol é um fenômeno sociocultural que reflete o que acontece na sociedade. Precisamos de um debate mais amplo na sociedade para conquistar mudanças internas”, afirma a pesquisadora, que defende que ações como a criação de equipes femininas nas categorias de base são caminhos que podem levar a uma maior integração da mulher no esporte, inclusive nos cargos de gestão,
Em concordância com o que foi colocado pela pesquisadora, a diretora alvirrubra Tatiana Roma acena que o futebol só poderá ser menos desigual quando o país alcançar esse patamar. “A gente não pode tirar o futebol do contexto do País, a gente não pode tirar o futebol do contexto do esporte em geral. Então eu não vou ter uma equidade num clube de futebol sem eu ter uma equidade na sociedade em geral”, explica.