Mais afetadas pela depressão, mulheres não recebem diagnóstico em 70% dos casos, diz estudo
Pesquisadores da USP concluíram ainda que estar grávida aumenta 3,5 vezes risco de subdiagnóstico
No Brasil, 71% das mulheres consideradas deprimidas nunca chegaram a ouvir dos profissionais que as atendiam que estavam enfrentando um quadro da doença e, portanto, não tiveram indicação de tratamento.
Essa é a conclusão de um estudo de três pesquisadores do departamento de medicina preventiva da Faculdade de Medicina da USP. Os resultados estão na edição 283 do Journal of Affective Disorders.
O trabalho é uma análise secundária a partir dos resultados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2013, que à época do estudo era a mais recente. A PNS é aplicada pelo IBGE.
Na PNS, 22.445 entrevistadas em idade reprodutiva, isto é, de 18 a 49 anos, responderam a uma enquete com dados sociodemográficos, obstétricos e clínicos e ao PHQ-9, questionário que afere a presença e a gravidade da depressão.
A pontuação no PHQ-9 foi o primeiro filtro dos pesquisadores: 19.666 mulheres que marcaram menos de nove pontos, linha de corte da depressão, foram descartadas.
As 2.491 mulheres consideradas deprimidas, projetadas na população do país, representam 18,3 milhões de brasileiras. E, daquelas, 1.769, ou 71%, não haviam recebido diagnóstico, mesmo tendo passado por consulta nos 30 dias anteriores.
A depressão afeta 264 milhões de pessoas no mundo, segundo o estudo Global Burden of Disease. Estima-se que quase 20% dos indivíduos terão ao longo da vida ao menos um episódio depressivo e que a propensão das mulheres à depressão seja o dobro da dos homens.
A equipe brasileira percebeu, ainda, que a gestação também pesava contra. Pelos cálculos dos pesquisadores, estar grávida, como 800 dessas mulheres, aumentava em 3,5 vezes o risco de subdiagnóstico.
"É triste, porque a depressão tem efeito para ela, a mãe, e para o bebê", diz o ginecologista Alexandre Faisal Cury, primeiro autor do estudo. A depressão na gestação, se não tratada, pode ocasionar baixo crescimento fetal, partos prematuros e baixo peso da criança ao nascer.
A depressão na gestante é, ainda, o principal preditor da depressão pós-parto –metade das mulheres que desenvolvem essa condição já estavam deprimidas na gravidez.
Muitos fatores contribuem para o subdiagnóstico, da falta de tempo nos atendimentos à associação culturalmente arraigada entre maternidade e felicidade.
Mulheres mais jovens e sem casos de aborto anterior tendem ainda mais a não receberem o diagnóstico, segundo a pesquisa.
Isso pode ser explicado pelo fato de, a partir de 35 anos, elas serem observadas mais atentamente, pelos riscos na gravidez.
A gaúcha Anne Knewitz, 26, e a carioca Maria Eduarda Silva, 21, ilustram bem os achados da pesquisa. Ambas tinham diagnóstico psiquiátrico prévio, mas isso não foi alvo de seus atendimentos pré-natal.
"Eu sempre estive estável com medicação. Parei um mês após engravidar", conta Anne. O remédio foi suspenso pelo psiquiatra e ela diz ter ficado bem durante a gestação de sua primeira filha, agora com quase três anos.
"Mas a queda brusca hormonal após o parto foi intensa", diz, e um dia ela se viu entregando a bebê a sua avó e dizendo: "Não sei o que essa diaba tem!".
Ao se escutar, resolveu pedir ajuda e passou a seguir tratamento. Agora mãe de novo, começou a tomar antidepressivo após a chegada da segunda filha, que ainda não tem dois meses.
A história de Anne traz ainda um ponto detectado na análise do grupo de Faisal Cury e que gerou outro artigo científico, publicado no International Journal of Gynecology and Obstetrics.
Mulheres negras, como ela, têm 1,5 mais chance de subdiagnóstico de depressão na gravidez, independentemente de renda.
Para Faisal Cury, o dado se soma a outros subdiagnósticos médicos relatados em pesquisas e relacionados à cor da pele, indicando racismo estrutural.
"A maioria das pessoas acha que uma pessoa com a pele negra ou parda não é instruída e não tem condições", diz Anne.
Ela planejou e desejou ser mãe, mas nada a preparou para o turbilhão. No caso de uma jovem que não sonhou sua gravidez, o baque de ter a vida toda modificada é ainda maior.
É o que relata Maria Eduarda Silva, que engravidou sem querer aos 19. "Não fui capaz de observar os sinais antes, descobri já com 26 semanas. Achava que as mudanças do corpo eram devido à pílula do dia seguinte. Foi um grande susto."
Um susto e um risco. Além de ter tido só três meses para se habituar à ideia da maternidade, ela é diabética e passou o curto pré-natal apavorada. "Tinha medo de morrer, eu e meu filho, o tempo todo."
Apesar de ter tido diagnóstico de depressão aos 16, havia abandonado o tratamento e isso não foi levado em conta. "Eles se preocupavam com a gravidez em si. Só me lembro de uma vez a obstetra ter me dito que, se eu quisesse perguntar algo, era para me sentir à vontade."
Ela não ficou à vontade, nem ali nem em lugar nenhum. "Eu sempre me sentia deprimida de alguma forma. Como eu descontinuei o tratamento, eu não sabia mais o que era doença ou o que era só meu mesmo."
Quando o filho tinha nove meses, procurou orientação. Com a ajuda de uma igreja, consultou-se com um psiquiatra a preço simbólico.
Um mês mais tarde, entrou em coma por uma complicação da diabetes. Em seguida, a pandemia veio e ela não conseguiu mais se tratar.
Se mundialmente a crise do coronavírus tem sobrecarregado as mães, as que já se encontravam deprimidas têm desafios extra.
Anne Knewitz diz que vive com a segunda filha uma experiência de maternidade "totalmente diferente", mas, com o isolamento social, interrompeu a terapia.
Sua rede de apoio também se viu restrita. Ela mora com a mãe e com o namorado, mas a filha maior não está indo para a creche. "A gente fica sempre casa-criança-casa-bebê. Não temos tempo pra gente, para um banho, para lavar os cabelos, para comer."
A crise econômica também pesa. O namorado está empregado, mas "tudo subiu". "Mercado antes fazíamos com pouco, hoje o pouco só traz uma ou duas cestas."
Maria Eduarda, ao engravidar, estava guardando dinheiro para um cursinho pré-vestibular. Hoje não trabalha nem estuda. Não consegue ir ao psiquiatra da rede pública para a qual recebeu encaminhamento porque não pode pagar a passagem.
Mas ela espera retomar o curso de sua vida. "Tenho interesse em me formar em direito algum dia."