Falta de bloqueadores musculares obriga médicos a recorrerem a drogas de terceira linha
Até a pandemia, essas drogas estavam mais restritas aos centros cirúrgicos
A escassez de bloqueadores neuromusculares e sedativos vem obrigando equipes médicas a recorrerem a drogas de segunda ou terceira linha; a racionarem o uso dessas drogas; e a compensarem a ausência de um medicamento com a sobrecarga de outro, uma forma de se buscar a sobrevida de pacientes com Covid-19 que precisam ser intubados.
Os resultados são mais sofrimento e angústia nos leitos de UTI, prejuízo na adaptação de pacientes à ventilação mecânica e mais mortes, segundo médicos intensivistas ouvidos pela Folha de S.Paulo.
Diante de sucessivos alertas de que o esgotamento de medicamentos é uma questão de dias, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) decidiu adotar medidas regulatórias emergenciais, como a possibilidade de importação direta de insumos por hospitais.
O Ministério da Saúde anunciou novas requisições administrativas de medicamentos, feitas diretamente aos fabricantes, para tentar evitar um colapso definitivo nas UTIs.
O principal problema, segundo o relato dos profissionais, é a falta dos bloqueadores, medicamentos que relaxam a musculatura e a caixa torácica e evitam que os pacientes "briguem" com a ventilação mecânica.
Até a pandemia, essas drogas estavam mais restritas aos centros cirúrgicos. Passaram a ser decisivas no tratamento de pacientes que precisam ser intubados.
O procedimento mais comum, num processo de intubação, é a administração de um analgésico, seguido de um sedativo para a provocação do coma induzido. Os bloqueadores musculares são aplicados na sequência e durante o período de intubação.
A falta de bloqueadores vem fazendo com que médicos tentem compensar essa escassez com mais sedativos, uma forma de se buscar o relaxamento necessário e a garantia de ventilação mecânica. Profissionais de saúde relatam que essa compensação, que precisa ser feita diante de falta de alternativas, contribui para mais mortes nas UTIs.
Os dados sobre estoques e vendas do chamado kit intubação, informados à Anvisa desde agosto, quando a escassez já era uma realidade, evidenciam o drama da falta desses relaxantes musculares.
O estoque de besilato de atracúrio em março, por exemplo, equivale a apenas 6% das vendas feitas. Do besilato de cisatracúrio, 4,5%.
O mesmo banco de dados da Anvisa revela que União, estados e municípios são responsáveis por apenas 13,6% das compras diretas de drogas do kit intubação. A maior parte fica com distribuidoras (63,2%), de quem o poder público também compra, e com estabelecimentos privados (22,3%).
Existe um verdadeiro apagão de fornecimento de determinadas drogas pelo setor público em estados da região Norte e em parte dos estados do Nordeste, segundo a compilação feita pela Anvisa.
Com a escassez mais aguda, médicos precisam recorrer a sedativos e bloqueadores que consideram de segunda ou terceira linha. Ou é isso ou é nada, em muitos casos.
"Em vez de usar um de primeira linha, usamos um de segunda ou terceira linha. Com isso, o ato de intubar fica mais difícil e a adaptação à ventilação, prejudicada. Essas drogas provocam mais efeitos adversos em pacientes", afirma Wagner Nedel, que representa a Amib (Associação de Medicina Intensiva Brasileira) no Rio Grande do Sul, estado onde o sistema de saúde colapsou.
No Paraná, onde também houve colapso da rede pública de saúde, unidades deixaram de atender pacientes com Covid-19, em estado grave, por falta de drogas do kit intubação.
Os médicos já foram avisados que o esgotamento de medicamentos segue uma ordem: primeiro os bloqueadores neuromusculares, depois os sedativos e, então, os analgésicos.
"Com a pandemia, o consumo de bloqueadores se elevou 5.000%. Antes, éramos refratários a esse tipo de droga, em razão de atrofiamentos [decorrentes de paralisias prolongadas dos pacientes]. Hoje, o pensamento é que isso se resolve depois. Agora é preciso 'bloquear' para brigar pela vida", diz Rafael Deucher, presidente da Sociedade de Terapia Intensiva do Paraná.
Segundo ele, a falta de sedativos e bloqueadores deixa um paciente grave intratável. "Às vezes, passa a ser necessário carregar a mão mais em um medicamento do que em outro."
A escassez dessas drogas, e consequente colapso no atendimento a pacientes em estado grave, é uma realidade bem antes deste momento mais crítico da pandemia, em que mais de 2.000 brasileiros morrem todos os dias.
Já em agosto, a Anvisa publicou um edital de chamamento para que empresas detentoras de registros de medicamentos informassem à agência, diariamente, dados sobre produção, estoque, venda e risco de escassez de 20 drogas do kit intubação.
Bloqueadores neuromusculares, sedativos e analgésicos já estavam em falta naquele momento. Em setembro, um documento do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) já alertava que "a classe dos neurobloqueadores musculares é a que impõe maior atenção e cuidados de gestão".
Em 90% dos estados, já naquele momento, a quantidade de cisatracúrio era suficiente para menos de cinco dias. Em 70%, o atracúrio era suficiente para menos de dez dias.
O Conass passou a fornecer planilhas ao Ministério da Saúde com detalhes sobre consumo e estoque nos estados. Com base nessas planilhas, a pasta tenta garantir o abastecimento de medicamentos básicos para intubação.
Para isso, um dos principais instrumentos usados é a requisição administrativa. O ministério obriga que a indústria entregue o produto, mediante posterior indenização. A prática está prevista na Constituição Federal, para situações como a de uma pandemia.
As quantidades fornecidas são insuficientes desde os primeiros meses da pandemia. O MPF (Ministério Público Federal) investiga essa escassez, e a incapacidade do Ministério da Saúde em suprir os medicamentos, desde junho de 2020.