Pandemia

Falta de dados gera desconfiança sobre eficácia de suposto remédio contra Covid-19

Dados sobre o suposto remédio não foram publicados em nenhuma revista científica até o momento

Remédio (imagem ilustrativa) - Agência Brasil

Um grupo de médicos e pesquisadores ligados à rede de hospitais e serviços de saúde Samel, de Manaus, apresentou no dia 11 de março os resultados supostamente promissores de um estudo com o uso do medicamento proxalutamida em pacientes hospitalizados com a Covid-19.

No evento, transmitido pela internet, os pesquisadores afirmaram que o remédio foi responsável por uma redução dramática de 92% nas mortes causadas pela doença, além de diminuição de tempo de internação em cerca de três vezes.

Segundo os pesquisadores, o estudo contou com 600 participantes divididos em dois grupos –um recebeu a proxalutamida e outro um placebo para que os efeitos fossem comparados. O estudo também foi randomizado (escolha aleatória de quem participaria de cada grupo) e duplo-cego (nem participantes nem pesquisadores sabiam quem estava em qual grupo). Os métodos são os mais usados em pesquisa clínica para minimizar o viés nos resultados.

Os dados não foram publicados em nenhuma revista científica até o momento, mas o dermatologista Carlos Wambier, professor na Universidade Brown (Estados Unidos), que esteve envolvido na pesquisa, afirma que os cientistas planejam submeter o artigo com o estudo ao New England Journal of Medicine, um dos periódicos mais relevantes da área da saúde.

O remédio, um bloqueador de hormônios masculinos (antiandrógeno) ainda em desenvolvimento pela farmacêutica chinesa Kintor, surge no Brasil envolto em polêmica no momento mais crítico da pandemia do coronavírus Sars-CoV-2 no país.

 



Além da falta da publicação em uma revista científica, o que permitiria que os dados fossem revisados e confirmados por outros cientistas da área, gerou desconfiança o apoio dado ao remédio por bolsonaristas e defensores do chamado "tratamento precoce" contra a Covid-19, que inclui remédios sem eficácia comprovada para tratar a doença -caso da cloroquina e da ivermectina.

Um dos participantes da apresentação dos resultados foi o infectologista Ricardo Zimerman, médico que defende publicamente o uso do "tratamento precoce", kit de remédios que recebe amplo apoio do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Nas redes sociais, o médico é crítico do isolamento social e tratou as vacinas com desconfiança –embora em uma foto publicada no dia 11 de fevereiro o médico afirma que recebeu a Coronavac, o que desagradou a alguns de seus seguidores.
O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL), filho do presidente, demonstrou entusiasmo com a nova droga e propagou seus resultados pelas redes sociais.

De acordo com o canal de notícias CNN Brasil, Bolsonaro já teria conversado com o presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Antônio Barra Torres, sobre uma autorização para uso emergencial do medicamento no país.

Ainda em testes, a proxalutamida não tem liberação de uso em nenhum lugar do mundo até o momento. A droga foi inicialmente criada para tratamento de câncer de próstata e mama.

Para a biomédica Mellanie Fontes-Dutra, coordenadora da Rede Análise Covid-19, organização de cientistas que coleta, analisa e divulga dados sobre a doença, faltam muitas informações a serem apresentadas do estudo de Manaus.

"Ainda não sabemos o perfil dos participantes, nem como as análises estatísticas foram feitas. Por enquanto, é muito difícil tecer qualquer conclusão", diz.

Ainda em abril de 2020, Wambier publicou um artigo com outros pesquisadores -entre eles Andy Goren, presidente da empresa de biotecnologia para produtos capilares Applied Biology, que também participou do estudo feito em Manaus com a proxalutamida,- no qual investigaram a relação entre os androgénos e a Covid-19.

O artigo, publicado na revista Dermathologic Therapy, foi seguido por outro trabalho publicado em maio de 2020 no periódico Drug Development Research, em que os cientistas defendem que a sensibilidade aos andrógenos seria uma determinante para o desenvolvimento da Covid-19 mais grave, o que também poderia explicar porque homens sofrem mais com a doença do que mulheres.

O fato de haver mais mortes de homens do que de mulheres pela doença ainda não foi explicado pela ciência. Alguns cientistas teorizam que fatores sociais poderiam ajudar a entender o fenômeno, uma vez que homens podem estar mais expostos aos riscos e seguirem menos as medidas de proteção contra o vírus.

Em linhas gerais, o coronavírus Sars-CoV-2 infecta as células humanas ao se conectar com a enzima ECA2, presente em células de mucosas que revestem órgãos do aparelho respiratório entre outros, mas, para isso, o vírus conta com uma ajudinha da serina protease transmembranar 2 (TMPRSS2), que pode ser bloqueada por antiandrógenos como a proxalutamida.

"O TMPRSS2 é um chaveiro. O vírus vem e quer entrar na casa (célula), mas a chave não funciona. O chaveiro prepara a chave do vírus [revestimento em forma de espinhos ao redor do patógeno], para que ela se encaixe perfeitamente na fechadura da porta, que é o receptor ECA2", explicou Wambier por email à Folha.

"Sabemos como bloquear a TMPRSS2 e também como bloquear a produção de TMPRSS2", diz o médico.

Com os textos devidamente publicados, os pesquisadores mostraram a plausibilidade biológica para o uso do medicamento contra a Covid-19. Falta o estudo clínico publicado em revista científica, revisado por pares.

Segundo Wambier, há outros medicamentos com o potencial de ter o mesmo efeito. "Há outros antiandrógenos potentes usados na urologia oncológica disponíveis comercialmente no Brasil, tais como a apalutamida e a enzalutamida, ou mais antigos, como a bicalutamida, porém ainda não foram testados para Covid-19", diz o pesquisador.

"Estamos motivando investigadores brasileiros, americanos e espanhóis a testarem outros fármacos similares", afirma.