DOCUMENTÁRIO

'Currais' resgata os horrores dos campos de concentração no Ceará

Filme de David Aguiar e Sabina Colares chama atenção para o apagamento histórico do drama sofrido por flagelados da seca em 1932

Documentário "Currais" - Divulgação

“O silêncio apaga tudo”, diz o personagem vivido pelo ator Rômulo Braga na cena inicial do filme “Currais”, que chega nesta quinta-feira (1º)  às plataformas digitais. Unindo realidade e ficção, o documentário dos cearenses David Aguiar e Sabina Colares tenta trazer à tona um fato histórico que foi sendo gradativamente escanteado pelas narrativas oficiais. 

Com certeza, o leitor desta reportagem já deve ter ouvido falar dos horrores de Auschwitz e tantos outros centros de confinamento promovidos pelos nazistas contra judeus e outras minorias políticas. O que poucos sabem é que no Brasil, bem longe da Europa, também existiram campos de concentração. 

Nos anos de 1915 e 1932, o Ceará vivenciou os chamados “currais do governo”, que serviram para isolar as vítimas da seca. O objetivo era impedir que os flagelados vindos de diferentes estados do Nordeste conseguissem migrar para Fortaleza, que vivia um grande momento de desenvolvimento econômico. 

Além da Capital, havia centros espalhados por diversas cidades cearenses, como Senador Pompeu, Quixeramobim e Ipu. Nesses locais, famílias inteiras - incluindo crianças e idosos - eram obrigadas a trabalhar em grandes obras em troca de comida e viviam em condições humilhantes. Muitos não conseguiram sobreviver e seus corpos foram enterrados em valas comuns. 

“Minha família é do interior do Ceará e eu sempre tive contato com histórias de seca e de violências que ocorriam no Sertão. Uma das coisas que mais me marcou quando criança foi ter presenciado, de forma muito naturalizada, o modelo de trabalho escravo ao qual muitos sertanejos eram submetidos. Quando me deparei pela primeira vez com a história dos campos de concentração, toda essa memória da infância me veio à cabeça”, relembra David Aguiar.

Na visão dos diretores, olhar para o drama dos retirantes ajuda a entender o processo de construção da cidade de Fortaleza como ela é hoje. “Quanto mais a gente pesquisava, mais percebia a grandiosidade do tema. Esse período que tratamos foi quando mais se construiu ruas, praças e prédios, tudo pela mão de obra dos flagelados. Nossa cidade se ergueu pelo massacre desse povo”, observa Sabina.

Ator Rômulo Braga está no filme (Foto: Divulgação)

O casal de cineastas mergulhou em um profundo processo de pesquisa ao longo de quatro anos. Documentos, matérias de jornais da época, fotografias, depoimentos e outros materiais serviram de embasamento para os diretores falarem dos acontecimentos de 1932, quando o governo de Getúlio Vargas resolveu retomar a implementação dos tais “currais” já experimentados em 1915. A reconstrução dos fatos se dá através do acervo coletado e da inserção de atores vivenciando personagens.

Rômulo Braga interpreta o neto de um dos sobreviventes dos campos de concentração. Em busca de conhecer a história do avô, ele tenta conectar os fragmentos de memórias que restaram nesses locais. “Tivemos acesso ao acervo particular da historiadora Kênia Rios, com gravações de depoimentos gravados nos 1990 de remanescentes dos ‘currais’, que hoje já não estão mais vivos. O avô do protagonista e a personagem vivida pela atriz Zezita Matos foram extraídos dessas entrevistas. Então, mesmo com partes ficcionalizadas, 90% do que está no longa é baseado apenas na realidade”, explica Sabina.   

“Currais” percorreu diversos festivais, como o Cine Ceará e a Mostra de Tiradentes. Na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2019, recebeu o prêmio da Associação Brasileira dos Críticos de Cinema de melhor filme de diretor estreante. Iniciando agora sua carreira no streaming, o longa está disponível nas plataformas iTunes, Apple TV+, Google Play, YouTube Filmes, Vivo, Now e Looke.