Vacinação contra a Covid-19: entenda a ordem e os critérios da fila de imunização
Com mais de 210 milhões de habitantes, o Brasil caminha a passos lentos na imunização contra a doença. O país sequer conseguiu concluir os grupos prioritários, que correspondem a quase 36% da população
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possui 212 milhões de habitantes. Diante da pandemia causada pelo novo coronavírus e do ainda insuficiente número de vacinas contra a doença adquiridas para imunizar a população, o País caminha a passos lentos até uma significativa vacinação em massa.
Como não há doses de imunizantes para todos, foram estabelecidos grupos prioritários para receberem as primeiras vacinas disponíveis. Conforme o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 definido pelo Ministério da Saúde (MS), e que se encontra em sua quinta versão, atualizada em março deste ano, o País conta com 29 grupos prioritários, classificados também entre eles, até então, em ordem de prioridade.
De acordo com as estimativas do MS, aproximadamente 77,3 milhões de pessoas se encontram nestes grupos, o que equivale a quase 36% da população total brasileira. No topo das classificações prioritárias estão idosos, profissionais de saúde, povos e comunidades tradicionais ribeirinhas e quilombolas, além de povos indígenas vivendo em terras indígenas e pessoas com deficiência institucionalizadas. Nesta semana, aliás, o Brasil chegou a 20 milhões de pessoas vacinadas, tendo imunizado quase 10% da população.
Conforme o plano nacional de vacinação, após os idosos, o próximo grupo prioritário a receber as doses seria o de pessoas com comorbidades, o que inclui, por exemplo, pacientes com doenças cardiovasculares, cânceres, diabetes, hipertensão e doenças renais crônicas. No entanto, o Ministério da Saúde, por meio de nota técnica publicada no último dia 31, antecipou o envio de doses de vacinas contra a Covid-19, direcionado exclusivamente para a vacinação de trabalhadores das forças de segurança e salvamento e forças armadas.
No documento, o MS afirma que a medida foi adotada visando a contemplar os profissionais mais expostos às ações de combate à Covid-19. De acordo com as estimativas da pasta, o País soma quase 950 mil trabalhadores na segurança pública.
Em Pernambuco, foi anunciada, na última sexta-feira, a marca de um milhão de pessoas que receberam pelo menos a primeira dose do imunizante contra a Covid-19. "Vamos continuar avançando na imunização dos idosos, dos trabalhadores da saúde e dos profissionais de segurança pública, como previsto no Plano Nacional de Imunização”, afirmou o governador Paulo Câmara.
Segundo a Secretaria Estadual de Saúde (SES), estima-se que o contingente dos profissionais de segurança pública chegue a aproximadamente 38,5 mil pessoas, sendo cerca de 26 mil policiais e 12,5 mil agentes das forças armadas. No primeiro lote antecipado pelo governo federal, há, segundo a SES, doses disponíveis para imunizar 2.374 trabalhadores deste segmento.
Apenas trabalhadores que atuam na chamada linha de frente de combate à Covid-19 poderão ser imunizados nesta fase. Dessa forma, profissionais que atuam, por exemplo, em atividades administrativas não estão aptos a receber a vacina. Na sexta-feira, o município de Igarassu anunciou que os guardas municipais serão incluídos na campanha. Até então, apenas agentes de segurança estaduais e federais estavam no grupo que receberia as primeiras doses no Estado.
Para o presidente da Associação Municipalista de Pernambuco (Amupe), José Patriota, o pouco quantitativo contribui para essa seleção restrita. “Todo mundo tem mil argumentos para ser grupo prioritário, mas não tem vacina para todos. [Porque] Não se cuidou cedo no Brasil, senão a gente não estava nessa tensão”, disse.
O secretário de Defesa Social de Pernambuco, Antonio de Pádua, ressaltou que a antecipação de doses para os profissionais da segurança pública é fruto da demanda e articulação da categoria. “Esse primeiro lote está longe de contemplar todos os trabalhadores da segurança, mesmo se considerarmos apenas os que estão na linha de frente. Mas é um passo importante que damos, uma vez que significa uma vitória da mobilização de secretários estaduais de segurança, comandantes e chefes de polícia de todo o Brasil para a inclusão dessa categoria estratégica entre as prioritárias no plano nacional de imunização”, comentou.
Na coletiva de imprensa da última quinta-feira, o secretário estadual de Saúde, André Longo, também destacou as mudanças na ordem de prioridade da fila de vacinação: “Tem havido algumas quebras nesse processo por parte da Câmara Técnica do PNI, a nível nacional. Agora mesmo, nós tivemos a excepcionalização das forças de segurança e salvamento, que passaram a ser atendidas numa pequena quantidade de doses, no chamado fundo estratégico que o governo federal fez do contingente de vacinas”, comentou.
Durante a entrevista, Longo reforçou, ainda, a necessidade de manter como grupos prioritários idosos e pessoas com comorbidades: “A gente acredita que neste momento é fundamental conseguir vencer aqueles grupos que têm maior vulnerabilidade para que a gente então possa ter um cenário epidemiológico melhor, em relação a casos graves e em relação a óbitos. Eu volto a dizer, toda a nossa prioridade está voltada para aquelas pessoas mais idosas, acima de 60 anos, que são ainda 75% das pessoas que morreram em Pernambuco até hoje pela pandemia. Se você colocar as pessoas com mais de 50 anos com comorbidades, isso vai para perto de 90%”.
Comorbidades
Com vacinas ainda insuficientes e milhões de pessoas nos 29 grupos prioritários elencados pelo Ministério da Saúde, as diferentes categorias lutam para que o processo de vacinação seja acelerado e para que priorizem aqueles que têm mais riscos de desenvolver as formas graves do coronavírus.
Em um processo que pode ser descrito como “prioridade da prioridade”, pacientes com comorbidades, grupo em que segundo as estimativas do governo federal estão 17,7 milhões de pessoas, sendo assim o mais numeroso na fila, e médicos alertam para a importância de se manter tais indivíduos entre os prioritários e, ainda, classificar quais doenças devem ser primeiramente atendidas.
“As pessoas com comorbidades deveriam ser prioridade pelo mesmo motivo que os idosos. Possuem um risco maior de complicar, de ter um desfecho pior, precisar de UTI, de ir a óbito”, explicou o médico Bruno Ishigami, infectologista do Hospital Universitário Oswaldo Cruz. Segundo ele, as doenças associadas podem aumentar o risco, inclusive, entre pessoas mais jovens. “De forma geral, as doenças cardiovasculares e hipertensão têm risco maior e junto com isso a obesidade. A diabetes vem um pouco depois mas também aumenta o risco. São essas que necessitam observação maior do paciente, a gente está mais atento aos sintomas como cansaço, falta de ar e coisas do tipo”.
Como explica o infectologista, quanto mais comorbidades a pessoa tiver, maior será a gravidade do caso, e, aliado a isso, é preciso definir, ainda, quais categorias serão priorizadas. “Uma coisa que eu acho bem importante de ser dita é que todos esses grupos são prioridades, professores, profissionais de segurança pública, pessoas com comorbidades. Mas infelizmente aqui no Brasil a gente não tem vacina suficiente porque o governo federal não quis comprar vacina, eles não se moveram ao longo do ano passado. Então, a gente precisa elencar a prioridade da prioridade”, argumentou.
O oncologista Glauber Leitão defende a priorização de pacientes com câncer - Foto: Arquivo Pessoal
Chefe da Unidade de Oncologia e Hematologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (HC-UFPE), Glauber Leitão defende que pacientes com câncer sejam priorizados na campanha de imunização. “Isso tem sido motivo inclusive de uma mobilização da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, que tem tentado viabilizar a inclusão, dentro do Plano Nacional de Operacionalização da Vacina, dos pacientes oncológicos, diagnosticados com câncer, independente de estágio da doença e da fase de tratamento, como uma prioridade na vacinação da Covid”, disse.
Segundo o médico, pesquisas demonstram o alto risco de óbito entre pacientes diagnosticados com as duas doenças: “Há um estudo brasileiro que foi publicado no jornal da Sociedade Americana de Oncologia Clínica, em que os pesquisadores acompanharam 198 pacientes que tinham diagnóstico de câncer e que foram infectados pelo coronavírus. Eles os acompanharam entre março e julho do ano passado e observaram que houve um número significativo de mortes, 33 pacientes desse acompanhamento faleceram. Ou seja, uma taxa de mortalidade seis vezes maior do que a taxa de mortalidade global. E isso demonstra que o paciente com câncer é mais suscetível e quando tem o vírus tem uma taxa de mortalidade maior”.
Coordenadora da residência médica em Nefrologia do HC, Gisele Vajgel destaca os altos riscos também para pacientes com doenças renais crônicas. “Principalmente aqueles que têm doença renal crônica avançada, ou seja, já estão em diálise, têm um risco altíssimo de mortalidade quando contraem a Covid. A mortalidade, comparada à população em geral, é cerca de sete vezes mais alta. É um subgrupo da população que requer muito cuidado. Então, a gente precisa que esses pacientes sejam priorizados para a vacina quando chegar na fase de comorbidades”.
De acordo com a médica, os pacientes que fazem hemodiálise e são expostos aos serviços de saúde e ao transporte três vezes por semana têm as chances de contrair o vírus aumentada. “Isso [ir às sessões], eles precisam fazer como um suporte de vida. O paciente já faz esse tratamento porque não tem outra escolha. E a gente viu que esses pacientes têm um risco maior, por isso merecem toda atenção das autoridades quanto à vacina”, frisou.
A administradora Patrícia Pessoa de Melo, 34 anos, descobriu um câncer no estômago em outubro do ano passado. Desde então, isolou-se em casa, afastou-se do emprego e interrompeu o contato presencial com familiares e amigos. “A gente já tomava todos os cuidados antigamente porque eu tenho uma mãe que também é paciente oncológica. Então, chegou o meu diagnóstico e veio junto com ele a Covid porque me lembraram que eu não poderia mais me encontrar com as minhas amigas ou trabalhar. Se não fosse a pandemia, eu teria teoricamente uma vida normal, fazendo o meu tratamento, mas iria trabalhar, minha filha iria para a escola, tudo isso”, contou. “Como eu não posso ter contato com muita gente e minha filha também não, acabou que ela nem descer do prédio pode, porque eu não posso correr o risco de pegar nada.”
Patrícia passou por cirurgia para a retirada total do estômago e deve concluir as sessões de quimioterapia na próxima semana. Ele estava na expectativa para receber a vacina quando soube da antecipação destinada aos profissionais de segurança. “Foi uma decepção porque eu estava na esperança que realmente a gente conseguisse receber. Eu estava na expectativa de ser vacinada porque depois dos idosos iriam vir as comorbidades. E por mais que eu acabe meu tratamento, eu ainda fico com as minhas defesas baixas. A pandemia está aí e eu não deixo de ser uma paciente oncológica”, disse.
Compra de Vacinas
A Câmara dos Deputados aprovou, na última quarta-feira, o projeto que autoriza empresas privadas a comprarem vacinas contra a Covid-19. A proposta, que segue para votação no Senado, retira a exigência de que as empresas doem integralmente as doses adquiridas ao Sistema Único de Saúde (SUS). Pelo texto, elas podem escolher entre a doação total ou parcial: doando metade ao SUS e utilizando a outra metade para vacinar gratuitamente seus funcionários. Nesse caso, precisariam seguir os critérios de prioridade estabelecidos pelo plano nacional de imunização mas não precisarão, como previa a proposta anterior, aguardar a imunização total dos grupos prioritários pelo SUS para iniciar a vacinação de forma particular.
Para a médica Gisele Vajgel, a medida pode ser positiva caso respeite as prioridades de compra de imunizantes pelo Sistema Único de Saúde. “Eu sou a favor de mais vacinas. Quanto mais vacinas, melhor. Obviamente, a gente só vai conseguir controlar a pandemia e restabelecer a economia e a vida das pessoas com vacina. Mas deve existir uma regulamentação, porque a prioridade tem que ser o SUS, afinal de contas o SUS vai respeitar todos os grupos prioritários, aqueles que não tem condições de comprar”, pontuou.
Já o médico Glauber Leitão é contrário a compra de vacinas por empresas e clínicas privadas porque acredita que abrirá caminho para que apenas os mais ricos tenham acesso a esses imunizantes. “Nós entendemos que quem tem a expertise, já mostrou a eficiência na vacinação, é o setor público, o nosso SUS, que é testado. E essa medida, ao meu ver, enfraqueceria o SUS. Eu acho que o direito à saúde, incluindo aí a vacina, deveria ser uma questão de Estado. De certa forma, poderia criar uma segunda fila de acesso e eu não vejo com bons olhos, sob ponto de vista da saúde pública e de democratização do acesso.”
O pensamento do oncologista é compartilhado pelo presidente da Amupe, José Patriota. “O que me preocupa mesmo é esse projeto de lei do congresso. Se isso não vai desarmar nos grupos prioritários. A vacina não vai começar a ser privilégio de quem tem dinheiro, isso que é perigoso. O meu medo é de começar a esvaziar o plano nacional”, pontuou.
Em uma outra vertente, em relação à compra direta de vacinas pela iniciativa privada, na última quarta, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, com sede em Brasília, derrubou liminares que liberavam a compra dos imunizantes sem que houvesse a necessidade de doá-las ao sistema público. Para a Advocacia-Geral da União, a medida poderia comprometer o Plano Nacional de Vacinação e ferir os valores da equidade e da universalidade que norteiam o SUS.