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Cidade mais indígena do Brasil ganha a própria usina de oxigênio

O objetivo é assegurar que, em uma eventual terceira onda da pandemia de Covid-19, não volte a acontecer falta de oxigênio do Alto e Médio Rio Negro

São Gabriel da Cachoeira - Marivelton Barroso/FOIRN

A inauguração de uma Casa da Mulher e de uma usina de oxigênio transportada por terra, água e ar desde o Paraná marcarão o Dia do Índio, nesta segunda-feira (19), em São Gabriel da Cachoeira (850 km a oeste de Manaus), o município com a maior população indígena do país.

Doada pela ONG Greenpeace à Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), a usina foi instalada em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) da prefeitura, responsável pela gestão, e será inaugurada pela manhã. O prefeito é Clóvis Saldanha (PT), do povo tariano.

O objetivo é assegurar que, em uma eventual terceira onda da pandemia de Covid-19, não volte a acontecer falta de oxigênio do Alto e Médio Rio Negro, uma população de maioria indígena de cerca de 100 mil pessoas, que abrange também os municípios de Barcelos e Santa Isabel.

"É uma conquista do movimento indígena do rio Negro nos seus 34 anos", diz o presidente da Foirn, Marivelton Barroso. "É uma assistência de oxigênio para 23 povos, para os municípios e para as instituições que trabalham com a gente em prol da população indígena."

Sem ter leitos de UTI próprios, São Gabriel é acessível apenas de avião ou de barco.

 



Os pacientes mais graves precisam ser removidos até Manaus de avião para tratamento. Boa parte dos insumos médicos de hospitalares é transportada pelo rio Negro, uma viagem que costuma durar três dias desde a capital do Amazonas.

Na primeira onda, em meados de 2020, chegou a faltar oxigênio na cidade de 46 mil habitantes, cuja população indígena perfaz 76,6% do total, segundo o Censo 2010 do IBGE. No Brasil, o percentual é de apenas 0,4%.

A nova usina terá capacidade de encher 12 cilindros de 50 litros a cada 24 horas. De acordo com o coordenador da Campanha Amazônia do Greenpeace Brasil, André Freitas, o cálculo da produção foi feito a partir da demanda durante a segunda onda -quando chegou a faltar oxigênio em hospitais da capital amazonense.

A usina foi fabricada em São José dos Pinhais (PR), com a altura adaptada para caber no avião cargueiro. A peça maior tem 1.140 kg e 1,75m de altura. A viagem, de nove dias, incluiu o transporte de caminhão até Campinas e depois o embarque em avião de carga até Manaus. Ali, ficou alguns dias armazenada antes de ser colocada em um barco para São Gabriel da Cachoeira.

Além da parte logística, houve uma complexa operação burocrática para fechar o acordo de uso do oxigênio, intermediado pelo ISA (Instituto Socioambiental) e que incluiu também os DSEIs Alto Rio Negro e Yanomami, do Ministério da Saúde.

A entrega da usina marca o fim da operação Asas da Emergência, do Greenpeace, que, ao longo de 13 meses, transportou, via aérea, 107 toneladas de alimentos e materiais de saúde e proteção para cerca de 70 povos indígenas de cinco estados da Amazônia.

No município de São Gabriel, morreram 107 pessoas em decorrência da Covid-19 até este domingo (18). Por causa da determinação do governo federal de vacinar apenas indígenas morando em áreas demarcadas, o público-alvo é de apenas 13.639 pessoas. Desse total, 45,7% receberam a segunda dose.

A Foirn vem cobrando que a vacinação prioritária para indígenas se estenda também ao seu pequeno casco urbano, uma ilha cercada de terras indígenas por todos os lados, em uma área comparável à da Inglaterra.

A comunidade de Itacoatiara-Mirim, a 15 minutos do centro de São Gabriel, fará nesta segunda-feira a inauguração da Casa das Mulheres.

Erguida ao lado de uma maloca construída há três anos, é parte de um conjunto de iniciativas que está transformando o local em um polo cultural, incluindo a produção de podcasts bilíngues com histórias de vida e teatro.

O evento que marcará a inauguração, intitulado "A Floresta e a Terra Pedem Silêncio", fará uma reflexão sobre as mudanças climáticas. Embora a região de São Gabriel esteja a centenas de quilômetros da frente de desmatamento mais próxima, no sul do Amazonas, os indígenas têm relatado mudanças no clima local, principalmente o regime de chuvas.

"A minha mãe diz que o mundo já está ficando velho e que, no passado, o tempo era programado, definido", afirma o baniwa Moisés Luiz da Silva, 40, responsável pelo evento. "Quem sofre a consequência somos nós. Na época da roça, o tempo não é mais certo."

Nos últimos meses, os indígenas de Itacoatiara-Mirim têm se envolvido em diversos projetos financiados por meio da Lei Aldir Blanc, do governo federal, criada para financiar ações emergenciais culturais durante a crise no setor desencadeada pela epidemia.

Um desses projetos é o Manifesto Lilhipokoroda, da estudante de teatro da Unicamp Lilly Baniwa, 30, performance na língua baniwa que discute a discriminação contra os povos indígenas.

De volta a São Gabriel por causa da epidemia, ela também encabeça a Oficina Permormatividades Identitárias, com jovens da comunidade e da cidade para discutir temas como alcoolismo e suicídio.


"No tempo do jesuíta José de Anchieta (1534-97), o teatro foi usado para dominar os povos indígenas, para pregar o catolicismo e menosprezar a nossa cultura", diz Lilly Baniwa sobre a chegada dessa arte ao Brasil. "Agora, é uma ferramenta para combater esse crime."