Dia do Livro: escritora Odailta Alves conta como foi transformada pela leitura
Carolina de Jesus transformou o cotidiano num barraco na favela do Canindé em livro; Odailta, em Santo Amaro, já escreveu cinco livros
“Quem não tem amigo mas tem um livro tem uma estrada”. Não tem frase que sintetize melhor a trajetória de Carolina Maria de Jesus do que essa. A escritora, que saiu da favela do Canindé, em São Paulo, para um das maiores publicações da literatura brasileira, transformou suas dores do cotidiano em diários.
Nem a fome, nem a pobreza, nem a falta de acesso à educação a impediram de se apaixonar pelos livros e pelo conhecimento. Pela história de Carolina e tantas outras pessoas transformadas, nesta sexta-feira, 23 de abril, comemora-se o Dia Mundial do Livro.
A data surge em um contexto conturbado para o mercado livreiro nacional. Em um documento com perguntas e respostas sobre o projeto de fusão da PIS/Cofins em um único tributo, a Receita Federal indica que os livros podem perder a isenção de impostos porque são lidos pela população mais rica do País.
A proposta é considerada pelo mercado editorial como “elitista” e pode encarecer o material, afastando ainda mais as parcelas mais pobres da leitura. O que estava sendo revertido desde 2014, segundo a Pesquisa Retratos da Leitura. O levantamento de 2020 mostra que a queda na leitura entre as classes D e E foi menor do que nas classes A e B, em relação à ultima pesquisa.
Os dados mostram que há interesse na leitura entre os mais pobres, ainda mais quando os livros foram barateados. O livro, literalmente, pode dar a possibilidade de sonhar e se transformar. Como relata Odailta Alves, escritora, poeta e mestra em Linguística. Ela não foi criada na favela do Canindé, como Carolina de Jesus, mas sentiu as violências diárias do “outro lado” do bairro de Santo Amaro, no Centro do Recife.
“Eu cresci em uma família extremamente violentada pelo sistema, então fui a primeira pessoa a ler dentro de casa. Nós não tínhamos livros em casa, mas os livros vieram através da escola. Foram as bibliotecas das escolas os meus primeiros refúgios quando eu aprendi a ler”, conta Odailta.
A leitura foi um escape para que a escritora fugisse da pobreza e da realidade em que vivia na comunidade. O universo das histórias lhe ensinaram a beleza de ler e se encantar com um mundo que, até então, era inexistente para ela.
“Na escola, aquela leitura meio que era meio obrigatória e depois fui descobrindo a beleza que era ler e fugir da situação que era o barraco, a violência e a pobreza, para acessar outros universos. Mas ainda ali era uma leitura que apresenta corpos que não são os nossos, que são os corpos pretos e favelados. Era a idealização de uma realidade que não era a minha. Eu não lia para ser escritora”.
Escrita
O contato com o conhecimento proporcionou que Odailta saísse da situação de pobreza. Formou-se, virou concursada e mestra. Mas a sua escrita só chegou ao mundo após os 30 anos. Depois de enviar e-mails e mensagens nunca respondidos, lançou sua primeira publicação independente, que já vendeu mais de dois mil exemplares.
“Se a gente for analisar a quantidade de pessoas negras que conseguem publicar nas grandes editoras desse País, somos menos de 6%. E aí você vai somar uma mulher, negra, favelada e lésbica, que não tinha nenhuma inserção na cultura e na militância. Me compreender esse processo enquanto escritora foi depois dos 30. Hoje, eu tenho 41 anos”, enfatiza Odailta Alves.
Odailta tem cinco livros publicados: “Clamor Negro”, “Cativeiros de Versos”, “Letras Pretas”, “Escrevivências” e “Pretos Prazeres”. A maioria deles, de forma independente, sem nenhuma grande editora por trás, mas com um público leitor garantido. Uma exceção, que segundo ela, faz parte de um sistema que quer aprisionar mentes negras e pensantes numa caixinha. “Ainda não nos dão a arte como uma forma de viver. Os nossos corpos ainda não são pensados como pensantes”, reitera.