Ciência

Em teste, técnica corrige defeito genético de doença neuromuscular sem cura

Distrofia muscular de Duchenne (DMD) afeta 1 a cada 3.500 meninos nascidos e geralmente mata os pacientes na terceira década de vida

CRISPR/Cas9 é uma ferramenta molecular para “recortar e colar” o DNA - Reprodução

Desde o fim do Projeto Genoma Humano, na virada do século 20 para o 21, uma das maiores ambições de cientistas e médicos é usar o conhecimento adquirido sobre os três bilhões de pares de letrinhas do nosso DNA para tratar doenças.

Uma delas é a distrofia muscular de Duchenne (DMD), uma moléstia neuromuscular grave que geralmente mata os pacientes na terceira década de vida.

Cientistas da University of Texas Southwestern Medical Center (UTSW), nos EUA, conseguiram desenvolver em laboratório ferramentas de terapia gênica capazes de corrigir de forma permanente o tipo de defeito genético mais comum da doença, em células e em camundongos. A pesquisa foi publicada nesta sexta (30) na revista Science Advances.

A doença afeta 1 a cada 3.500 meninos nascidos. As meninas são poupadas porque, mesmo que elas recebam um gene defeituoso, elas quase sempre têm uma cópia boa, em outro cromossomo X –um deles é herdado do pai, e outro da mãe. Já os meninos só tem um cromossomo X, herdado da mãe; neles o outro cromossomo sexual é o Y, herdado do pai.

Esse gene alterado faz com que as células dos músculos fiquem extremamente frágeis. Durante a contração muscular, elas são incapazes de manter a estrutura, provocando uma espécie de autodestruição. Além do prejuízo funcional, surge a inflamação, que também contribui para a disfunção dos músculos.

Não só os músculos ligados ao esqueleto (como bíceps, panturrilha, peitoral, glúteos, quadríceps etc.) são afetados mas também o coração. O organismo não consegue reparar os músculos na mesma medida em que são destruídos. Tanto a função cardíaca quanto a respiratória são impactadas.

Para o estudo, os cientistas produziram um camundongo que tem o mesmo tipo de alteração de 8% dos afetados pela DMD. Esse tipo de alteração, assim como na maior parte dos casos da doença, provoca um erro de leitura do DNA, que faz com que a proteína distrofina saia incompleta e não funcional.

Com isso em mente, os pesquisadores arquitetaram um plano para corrigir esse defeito, mas essa não foi uma tarefa trivial.

O que eles conseguiram fazer foi um rearranjo dos exons, que são sequências de DNA responsáveis por um pedaço da proteína. No gene da distrofina há 79 exons, ou seja, podemos pensar que a proteína tem 79 pedaços em uma sequência predefinida.

O defeito em questão é a deleção do exon 51. O desafio foi mexer na forma como a sequência é lida e traduzida em uma proteína, de forma definitiva. Para isso foi preciso fazer um resgate de tudo que vinha a partir do exon 52.

Com uma troca de letra (ou base) no fim do exon 50, foi possível fazer com que a leitura do exon 49 pulasse para o exon 52, formando uma versão um pouco mais curta da distrofina, mas capaz de cumprir com a maior parte de suas funções celulares.

Para isso foi usada uma técnica de edição de base (de troca de "letrinha"). Os estudos foram feitos em camundongos e em células musculares cardíacas cultivadas em laboratório (cardiomiócitos).

Uma outra tática foi fazer a inserção de duas bases no exon 52, o que impediu o truncamento da proteína. Isso foi feito em células cardíacas com base em uma sonda (responsável por achar o lugar certo da mudança na molécula de DNA) e uma tesoura molecular, capaz de fazer as edições desejadas.

Em ambos os experimentos com células em cultura, não só a proteína passou a ser detectada mas também houve redução de arritmia, um dos sinais apresentados pelas células defeituosas.

"Em princípio a completa restauração do exon faltante seria a melhor estratégia, mas, no momento, não há tecnologias de edição gênicas disponíveis para conseguir realizar isso em fibras musculares e em cardiomiócitos", contam à reportagem o principal autor do estudo, Francesco Chemello e o autor sênior, Eric Olson, por email.

Na avaliação da neurologista Sarah Camargos, professora da UFMG, o novo trabalho traz otimismo ao horizonte na batalha contra a distrofia de Duchenne. "Com essa edição mais fina e essa troca de bases é um mundo de mutações que podem ser abordadas", diz. "É um exemplo da medicina personalizada que vai permitir tratar várias deleções no mesmo gene."

Jonas Saute, coordenador do ambulatório de genética das doenças neuromusculares do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professor da UFRGS, explica que já existem outras tentativas de terapia gênica para DMD, como com a inserção de microdistrofina e minidistrofina –versões bem mais curtas da distrofina, mas que ainda, em tese, preservam alguma função. Os resultados, porém, ainda não são tão consistentes.

Por enquanto, diz Saute, o que está disponível para os pacientes é o tratamento com corticoides (anti-inflamatórios) e algumas moléculas que tentam forçar o "exon-skipping" (salto de exons), com a desvantagem de terem que ser infusionados toda semana.

"Estamos trabalhando para otimizar essas estratégias e obter as melhores eficiências de correção para as mutações mais comuns de pacientes com DMD. Infelizmente, existem algumas mutações menos frequentes em regiões essenciais específicas no início e no final do gene DMD que não podem ser editadas dessas formas. Um dos nossos objetivos futuros é encontrar uma solução para corrigir também essas mutações", afirmam os autores do estudo à reportagem.

Um obstáculo para que os estudos sigam para humanos, apontam os pesquisadores, é a possibilidade de alterações gênicas em lugares errados (e impactos potencialmente desastrosos, como propensão ao câncer). Chemello e colegas não detectaram nenhuma alteração inespecífica, mas essa é uma análise que tem que ser realizada em cada tentativa de tratamento para cada tipo de deleção.