América Latina

Pobreza na Argentina afeta quase 6 de cada 10 crianças

Os números da pobreza vêm crescendo acentuadamente na Argentina desde 2017, durante a administração de Mauricio Macri, segundo dados do Indec

Bairro Villa 31, uma das principais favelas de Buenos Aires - Ronaldo Schemidt/AFP

A quadra de futebol da Villa 31, uma das principais favelas de Buenos Aires, está dividida pela metade. Numa parte, adolescentes jogam bola. Na outra, um grupo de nove crianças, todas com máscaras e respeitando o distanciamento social, está sentado em roda. Junto com elas, Iván Madariaga, 28, explica como é a geografia da Argentina e fala os nomes das províncias e da capital.

"Não sou professor, mas estamos com problemas para seguir com as aulas aqui. Então decidimos, com outros pais, fazer essa 'escola improvisada' aqui fora, porque ao ar livre há menos risco de contágio. Cada dia um de nós estuda um conteúdo e vem passar para eles. Assim não perdem muita coisa", diz Madariaga.

As aulas regulares na Argentina foram totalmente suspensas nos primeiros sete meses da pandemia, e o retorno tem sido difícil e irregular. Além de os governos federal e da cidade de Buenos Aires discordarem quanto ao retorno presencial às escolas, numa disputa que foi parar na Corte Suprema, regiões como a da Villa 31 enfrentam a pandemia com mais dificuldades.

A interrupção das aulas presenciais provocou a evasão de estudantes mais vulneráveis, e a cifra dos que abandonaram a escola é de 40% entre os que moram em favelas, assentamentos e bairros pobres.

Também há mais pais desempregados que tiveram de levar os filhos às ruas para buscar trabalho, e os preços altos da comida têm tirado das refeições das crianças itens importantes. A hora de brincar, em muitos casos, foi devorada pela necessidade de trabalhar em casa para ajudar a família.

As condições da Villa 31 são até boas se comparadas às de novos assentamentos formados por pessoas que tiveram de sair de suas casas por não conseguirem pagar o aluguel em favelas. Alguns, como o de Guernica, já foram desalojados, após uma disputa política, mas muitos ainda permanecem na província de Buenos Aires e ao sul do país. Neles, não há educação nem água limpa, eletricidade ou comida.

Os números da pobreza vêm crescendo acentuadamente na Argentina desde 2017, durante a administração de Mauricio Macri. Os dados mais recentes do Indec, o IBGE argentino, mostram que hoje ela atinge 42% dos argentinos, um aumento de dois pontos percentuais desde a última medição e de sete em relação à anterior, marcando uma pronunciada curva ascendente.

Entre as crianças, o dado é ainda pior: 57,7% delas são pobres, em um cenário no qual a pandemia as afasta da escola e provoca a perda do emprego de muitos dos pais. Há, ainda, a situação macroeconômica, com queda de 9,9% do PIB em 2020, inflação acumulada de 36,1% neste ano e de 4,8% em março, mesmo com alguns setores da economia parados. O desemprego chegou a 11%, e mais de 1,1 milhão de pessoas perderam o trabalho na crise.

No ano passado, o governo fez uma grande emissão monetária para pagar o IFE (Ingresso Familiar de Emergência) e assim auxiliar famílias já inscritas em programas como a Asignación Universal por Hijo –o Bolsa Família argentino. Para 2021, porém, o governo disse não haver dinheiro para estender o benefício, já que emitir mais dinheiro causaria hiperinflação. Além disso, há limites para o congelamento das tarifas de energia e transporte decretado pelo presidente Alberto Fernández no começo da pandemia.

Nas últimas semanas, o Ministério da Economia passou a debater a necessidade de descongelar a conta de luz e, depois, as de outros serviços. Se assim for, o impacto nas famílias pobres será ainda maior.

Gabriel, 13, vende balas no centro de Buenos Aires. A mãe dele está na outra esquina, segurando um bebê. "Não me importo de vir aqui porque gosto de estar na cidade. Mas me dá dó que minha mãe tenha que pedir esmola e que o bebê esteja sentindo frio", diz. O pai das crianças está no interior, ajudando numa construção, e só retorna a cada três semanas. O trabalho informal representa 40% do mercado argentino.

De acordo com dados do Unicef referentes a 2020, 16% dos adolescentes realizam algum trabalho informal no país. Deste total, 46% não o faziam antes da pandemia. "Este é um indicador que mostra que, diante da falta de recursos nas casas, os adolescentes são levados a sair e ajudar", afirma Sebastián Waisgrais, especialista em inclusão social do Fundo das Nações Unidas para a Infância na Argentina.

Para Agustín Salvia, sociólogo da Universidade de Buenos Aires, "a pandemia agrava a pobreza infantil porque deteriora as condições de vida do núcleo familiar, mas a pobreza na Argentina se deve a causas estruturais que vão além da crise sanitária". Investimentos assistencialistas como o IFE, diz ele, são essenciais em momentos de emergência, assim como a urbanização de bairros pobres, o investimento em moradias e a melhora na criação de empregos.

Em geral, os planos de assistência social são elogiados por economistas e pela população, porque ajudaram a recuperar a Argentina da crise de 2001, em que o peso sofreu desvalorização e a pobreza atingiu 58,2% da população.

A pesquisa do Unicef também aponta que quatro a cada dez lares onde vivem crianças passaram a ter redução de recursos vindos do trabalho e que 70% deles perderam a metade ou mais da metade de suas remunerações. "Existe um amplo consenso de que as ajudas econômicas e sociais que o estado brinda são necessárias", afirma Luisa Brumana, do Unicef Argentina.

No município de Berazatégui, na Grande Buenos Aires, todo sábado há uma "olla popular" (panela comum) para ajudar moradores e, principalmente, crianças. Trata-se de uma tradição entre vizinhos de bairros pobres argentinos, . Cada pessoa traz algo para ajudar: carne, massa, arroz, tomates, chorizos, queijo, verduras –o que houver.

"No inverno, especialmente, ajuda muito. As crianças sabem que, naquele dia, vão ter uma refeição quente, uma sopa nutritiva", diz Izelina Galdéz, 42. A "olla" se repete em vários bairros e acaba virando um lugar de socialização. Neste encontro, cozinheiros e quem organiza a distribuição utilizam máscaras e luvas. O difícil é as pessoas manterem o distanciamento ou as proteções faciais corretamente.

"A gente tenta orientar, mas a fome é grande. O que pedimos de verdade é que os mais idosos não venham. Que algum parente venha buscar as porções que preparamos para eles. Mas os meninos com fome, e alegres por estarem juntos aqui, não tem como conter", afirma Galdéz.