Ex-assessor de Bolsonaro e médico detalham em lives 'gabinete paralelo' na gestão da pandemia
Detalhes da concepção e funcionamento desta estrutura, à margem do Ministério da Saúde, são descritos em duas lives realizadas entre Arthur Weintraub e o anestesista Luciano Dias Azevedo
Apontado como idealizador do chamado "gabinete paralelo" que assessora o governo federal no combate à pandemia da Covid-19, o ex-assessor da Presidência Arthur Weintraub estimou em cerca de 300 o número de pessoas aconselhando Jair Bolsonaro quanto ao uso da hidroxicloroquina.
Detalhes da concepção e funcionamento desta estrutura, à margem do Ministério da Saúde, são descritos em duas lives realizadas entre Weintraub e o anestesista Luciano Dias Azevedo, um dos médicos mais influentes entre defensores do chamado "tratamento precoce" contra a Covid.
As conversas foram promovidas pelo canal de Weintraub no YouTube e tiveram audiência baixa, inferior a 5.000 visualizações cada uma até quarta-feira (2).
A existência de um "gabinete paralelo", que aconselharia Bolsonaro sobre o uso de drogas ineficazes contra a Covid-19 como hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina, é uma das principais linhas de investigação da CPI da Covid no Senado.
Em 8 de julho de 2020, o então assessor da Presidência e o médico conversaram durante 58 minutos sobre os supostos benefícios do tratamento precoce contra o coronavírus. Na parte final da live, Azevedo explica à audiência que foi Weintraub quem criou o grupo paralelo e o agradece pela iniciativa.
"Eu quero te agradecer [Arthur], muito obrigado por essa jornada, de dias e noites que conversamos tanto, estudamos tanto juntos, discutimos tanta coisa. Você começou isso lá no começo de março [de 2020], pedindo para juntar gente para estudar [tratamento precoce]", afirma o médico Azevedo.
Em resposta, Weintraub retribui a gentileza e estima o tamanho da rede de contatos do interlocutor.
"Você juntou um grupo gigante. As pessoas não sabem. Você deve ter umas 300 pessoas na tua rede de contatos, networking, só da hidroxicloroquina. Você é antenado, você sabe o que está acontecendo lá fora", diz o então assessor da Presidência.
O médico em seguida emenda: "Agradeço pela oportunidade que vocês me abriram de eu puder juntar esse time para a gente poder estudar juntos e continuar achando soluções".
A participação de Weintraub na estrutura paralela entrou na mira da CPI da Covid após o site Metrópoles ter revelado o vídeo de um evento dele, em agosto de 2020 no Palácio do Planalto, em que fala sobre seu contato com médicos que defendem o tratamento precoce. Azevedo era um dos presentes à solenidade, na ocasião.
Nas lives, Azevedo e Weintraub confirmam a existência do grupo de assessoramento, embora não utilizem o termo "gabinete paralelo" em nenhum momento.
Weintraub foi assessor da Presidência até setembro do ano passado, quando ganhou um cargo na OEA (Organização dos Estados Americanos), em Washington, nos Estados Unidos. Ele é irmão de Abraham Weintraub, ex-ministro da Educação, que também vive na capital americana, trabalhando no Banco Mundial.
Sete meses depois da primeira live, em 13 de fevereiro deste ano, os dois amigos voltaram a conversar, desta vez num bate-papo online de duas horas.
O tema principal era o uso medicinal da maconha, mas na parte final eles voltaram a falar sobre tratamento precoce e o grupo de assessoramento paralelo. Weintraub já estava em Washington, em seu novo cargo na OEA.
Dirigindo-se aos que acompanhavam a live, Azevedo diz que Arthur Weintraub foi quem "conectou" os médicos do grupo, que levavam informações a Bolsonaro.
Médico concursado da Marinha, Azevedo explica que integrava o Docentes Pela Liberdade, entidade que reúne professores universitários de direita, e foi nessa condição que se aproximou de Arthur.
Na live, o médico chega a chamar amistosamente o ex-assessor da Presidência, que tem formação jurídica e não médica, de "cabeção que estuda pra caramba". Revela ainda que Abraham Weintraub, definido como "cabeção master", também participou da iniciativa.
"Arthur começou a buscar junto com o Abraham para achar soluções para o país e para os hospitais e levava os artigos para o presidente ler. O presidente foi entendendo a doença, foi entendendo as possíveis soluções, o tratamento [precoce] era uma das soluções", afirma Azevedo.
Em seguida, ele cita diversos médicos que se somaram ao grupo, inclusive Nise Yamaguchi, que prestou depoimento à CPI na última terça-feira (1º).
"Fomos construindo e agregando, aí veio o Zanotto, veio o Paulo, que é um colega da Unifesp que trabalha na área de linguística, o Marcelo, a Nise, o Wong, o Zeballos, a Marina, Luciana, Jorge, Zimmermann, já são mais de 10 mil. Entre fevereiro e março [de 2020] éramos nós que estávamos estudando, o Arthur tentando conectar esse pessoal todo", relata Azevedo.
Entre os médicos citados estão, além de Nise, Paulo Zanotto (virologista), Anthony Wong (pediatra, morto em janeiro), Roberto Zeballos (imunologista) e Ricardo Zimmermann (infectologista). A Folha não conseguiu identificar os demais.
Azevedo acrescenta ainda que esse grupo fornecia informações bem fundamentadas para Bolsonaro sobre o tema.
"Esses caras estavam ouvindo uma gama imensa de gente que estava trazendo soluções de tudo que é jeito para ele [Bolsonaro], de grandes instituições, que estavam tendo reuniões constantes. Isso precisa ser dito", afirma o médico.
Segundo ele, não eram opiniões "soltas".
"Não é uma opinião solta, que o presidente da República acordou de manhã e falou 'eu vou...' Não, existia um movimento e um porquê, essas pessoas idôneas que tivessem a paciência de virar a noite, estudando e lendo artigos e compartilhando. Foi assim que tudo começou", complementa.
Em diversos trechos da conversa, ambos fazem defesa enfática do chamado "tratamento precoce", desaconselhado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e pela maioria dos especialistas pela ineficácia e riscos envolvidos.
"Ah, mas não está cientificamente comprovado. Bicho, tamiflu ali atrás também não estava e foram dando para todo mundo quando teve o H1N1", afirma Arthur Weintraub na conversa de julho de 2020.
Em outro trecho, Azevedo defende o uso da hidroxicloroquina no primeiro estágio da doença, o da replicação viral. Ele cita como referência o médico ucraniano-americano Vladimir Zelenko, um dos principais difusores da droga no mundo, cujos estudos foram rechaçados pela maior parte da comunidade científica internacional.
"O último manuscrito do dr. Zelenko está mostrando 84% menos de internação e 5% menos de mortalidade naqueles que usam o protocolo de tratamento precoce", diz o anestesista.
A dupla também relativiza o peso da ciência no tratamento da Covid-19. Na live de julho, Azevedo diz que "a ciência na verdade é o confronto de ideias, é justamente puxar o lençol cada um para um lado para a gente poder chegar à verdade".
Já Weintraub, em outro trecho, diz que não se pode esperar pela comprovação científica de drogas contra a doença. "Esses blogs, não vou falar jornal, falam: 'o remédio não cientificamente comprovado'. Justamente, querem que esperem todos esses estudos para que depois possa utilizar, daqui a um ano, sei lá quando", diz.
Eles ainda apontam exagero na defesa do uso das máscaras, uma das principais recomendações de médicos para evitar a proliferação do vírus.
"O que você acha de ter que usar 11 máscaras?", pergunta Weintraub em tom irônico, em um trecho. Azevedo responde também com ironia, colocando uma bandana no rosto "igual bangue-bangue à italiana":
"A discussão chegou num ponto tão pouco produtivo que não querem saber se a máscara funciona ou não. Estão te obrigando a passar o dia inteiro e até uma parte da noite reinalando gás carbônico, teu sangue se torna mais ácido, diminui o pH. Virou uma grande loucura", diz o anestesista, citando suposto risco do uso da proteção facial, algo também sem comprovação científica.
Para o médico, usar a máscara se justifica "dentro de um busão", mas nem sempre ao ar livre. "Você está caminhando sozinho na rua, não vai vir o vírus, não vai ter uma asa que vai dentro do teu nariz e vai te infectar. Temos que trazer as pessoas para a realidade dos fatos."
A Folha enviou mensagem a Azevedo para comentar o tema, mas não teve resposta até a publicação deste texto. Também entrou em contato com a assessoria da OEA pedindo para falar com Arthur Weintraub, mas não recebeu retorno.