Incentivado por 'fake news' na pandemia, negacionismo tem raízes históricas na sociedade
Negação da ciência leva as pessoas a não usar máscaras e a desrespeitar o distanciamento social. Confira a análise de especialistas.
Mãe de boa parte das línguas europeias, incluindo a nossa, trazida pelos colonizadores portugueses, o latim é a origem do verbo que expressa uma atitude bem comum neste período de crise: negar. Foi o latino “negare” que nos trouxe o significado dos atos de “afirmar que não”, “contestar” e “não admitir a existência de algo”, no caso, a própria pandemia do coronavírus.
Turbinadas por polêmicas da internet, a negação da ciência e a desconfiança em relação às autoridades sanitárias incentivam as pessoas a não usar máscaras e álcool em gel, a se expor em aglomerações, a recusar a vacinação e a ingerir substâncias que podem causar danos ao corpo, ajudando a disseminar o vírus no país que hoje registra alguns dos piores índices de mortes e contágios no mundo.
O assunto está no centro da crise política brasileira. Em depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) instaurada pelo Senado para investigar as ações governamentais no combate à pandemia, no dia 2 de junho, a infectologista Luana Araújo foi enfática ao refutar uma das ideias defendidas pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e por apoiadores dele: a prescrição de um “tratamento precoce” contra a Covid-19.
“Nós ainda estamos aqui discutindo uma coisa que não tem cabimento”, disse. “É como se a gente estivesse escolhendo de que borda da ‘Terra plana’ a gente vai pular. Não tem lógica”.
Apregoado em correntes de mensagens em redes sociais como o WhatsApp, o Facebook, o Instagram e o YouTube, o “tratamento precoce” seria, segundo os propagadores, uma forma de evitar o agravamento da doença.
Nesses conteúdos, recomenda-se o uso de remédios comprovadamente ineficazes contra a infecção, como ivermectina e hodroxicloroquina, medicamentos prescritos para outros problemas de saúde. O risco, ao tomar essas drogas sem a indicação correta, é desenvolver efeitos colaterais que compliquem o quadro do paciente.
A fala de Luana Araújo faz referência ainda a outra dessas afirmações duvidosas: a ideia de que a Terra é plana, e não, como cientistas começaram a definir desde as primeiras observações de Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.), geoide, formato semelhante a uma esfera achatada nos polos.
O desencanto das redes
Embora já existissem em grande quantidade antes, crenças como essas, que se espalham pela internet com manchetes sensacionalistas e teorias da conspiração, na forma de “fake news”, ganham força na pandemia e incitam na população um comportamento negacionista.
“Eu penso no negacionismo como um tipo de construção própria da nossa cultura desencantada da palavra do outro. Ele tem raízes na nossa cultura, na nossa História e na forma como cada indivíduo responde ao mal-estar deste tempo”, observa Marina Assis Pinheiro, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “As informações nas redes sociais são validadas por pares e parecem encontrar mais desafios para serem desconstruídas pelo esforço argumentativo. É uma característica das ‘bolhas’”.
Nesta realidade “desencantada”, em que fatos e opiniões se misturam e se proliferam por múltiplos canais de comunicação, a dúvida sobre em quem confiar atinge, inclusive, instituições e órgãos oficiais, descredibilizados quando não oferecem soluções para um cenário de crises e tensões sociais.
“As próprias ‘fake news’ têm uma construção textual com uma espécie de apelo afetivo, que, num mundo que parece complexo e inflacionado de informações, acaba prevalecendo sobre as capacidades críticas. Então, pensa-se que as instituições são enviesadas ou que a voz da ciência atende diferentes interesses. Assim se desacredita a dimensão institucional e se investe naquilo que o vizinho ou tal ‘influencer’ diz”, analisa a pesquisadora.
A negação como arma política
O uso de boatos e mentiras para propaganda política e ideológica não é um fenômeno novo. Professor titular de História do Brasil no Período Republicano da Universidade de São Paulo (USP), o historiador Marcos Napolitano lembra que, no País, algumas ‘fake news’ já foram usadas em outras épocas e tiveram consequências.
Dentre elas, o pesquisador cita as cartas falsas do ex-presidente Artur Bernardes (1922-1926) contra o Exército e o Plano Cohen, documento difundido por militares integralistas que forjava um suposto plano comunista de tomada de poder e que foi utilizado como justificativa para o golpe do Estado Novo em 1937.
“Ao longo da História, sempre houve ‘fake news’ em vários formatos: boatos que se espalham pela população cuja origem é incerta, mentiras propositais elaboradas por governantes na forma de notícias falsas, documentos forjados ou propaganda política, financiamento de pesquisas pseudocientíficas por grupos empresariais ou Estados para legitimar seus interesses”, diz.
“A novidade atual é a escala e a rapidez que as ‘fake news’ ganharam com as redes sociais. Outra novidade é como as ‘fake news’ e o negacionismo se tornaram as estratégias centrais de certos governantes, deixando de ser um recurso eleitoral pontual ou um recurso esporádico na prática do poder”.
Na avaliação do historiador, os negacionismos e as teorias conspiratórias estão sempre presentes no tecido social “de forma latente".
"Nos momentos de crise política, convulsões sociais ou momentos de polarização ideológica aguda, essas narrativas ganham destaque e podem se tornar estratégia central para determinados grupos que disputam o poder. Estes grupos, normalmente ‘outsiders’ da política, podem ganhar relevância quando apoiados por outros grupos sociais, econômicos ou religiosos mais amplos, que se veem ameaçados em seus interesses e valores culturais”, explica.
A tática de utilizar falas negacionistas em embates com representantes de instituições e outros atores políticos já foi vista diversas vezes na conduta do presidente Jair Bolsonaro e de auxiliares do Governo Federal, partindo de declarações que contestavam a eficácia de medidas como o isolamento social, o uso de máscara e a vacinação e a própria gravidade da pandemia.
Para a cientista política Priscila Lapa, professora da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (Facho), trata-se de uma estratégia que o atual mandatário encontrou para ganhar espaço ainda antes de se eleger e que continua a adotar na condução do Governo.
“O cálculo dele não foi pensando nos melhores resultados para as pessoas, mas no melhor resultado político para si mesmo. Então, se a maior parte dos gestores do mundo estão guiando para um lado, ele preferiu escolher outro para se diferenciar”, avalia. “Essa ideia de relativizar e pôr dúvida o tempo inteiro é uma forma de desconstruir uma realidade. E o pior é que isso tem uma aderência de certo segmento da sociedade”.
No meio do descrédito com as instituições públicas – segundo pesquisa da agência global Edelman feita este ano, as empresas e as ONGs são as únicas que contam com a confiança de mais da metade dos brasileiros –, a população acompanha as sessões da CPI da Pandemia à espera de saber se a investigação trará alguma punição ao presidente ou se acabará “em pizza”.
Mas, na visão da professora Priscila Lapa, ela já dá resultados. “Quer queira, quer não, o próprio Governo está ‘sub judice’ ali. E a sociedade está podendo avaliar não só se o Governo acertou ou errou, mas também os tons, o comportamento e a capacidade técnica de alguns senadores e testemunhas”, argumenta.
Quando a ideia se torna prática
Trabalhando como chaveiro, José Augusto Silva dos Santos, de 55 anos, precisa sair todos os dias de casa, no bairro de Sítio Novo, Olinda, e considera excessivos os cuidados recomendados para evitar a transmissão do novo coronavírus.
Embora admita que a doença existe, ele diz que há um “terrorismo” em torno dela. “Muita gente que morreu, acho que não foi por Covid, os dados são manipulados. Ultimamente, as pessoas têm morrido mais por falta de comida do que pelo vírus”, afirma, acrescentando que não entende o porquê do isolamento social.
Como é norma em estabelecimentos e uma prática exigida nas residências, o chaveiro usa máscara ao entrar nos lugares, mas, no caminho, não sente a necessidade de colocá-la porque “não anda em bando”. Acredita também no “tratamento precoce” e, por isso, não pretende se vacinar.
“Eu já tenho o hábito de lavar as mãos e, se pegar, vou me tratar desde o início”, fala o chaveiro com base no que encontra em grupos de amigos no WhatsApp. De vez em quando, ele assiste a alguns telejornais.
As notícias falsas que se refletem no comportamento negacionista são uma preocupação no Brasil. Publicado em outubro de 2020, um levantamento do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe) mostrou que 67% da população diz não confiar em informações repassadas pelo WhatsApp, mas apenas 51% afirmam sempre checar a veracidade do que leem antes de repassar.
Para evitar a desinformação, é preciso prestar atenção não só no conteúdo que se recebe como também em quem escreveu ou publicou. Em campanha contra a desinformação lançada em março, o Google divulgou algumas dicas que podem ser úteis nesse trabalho de checagem (veja no infográfico acima).
A professora aposentada Adelice Feitosa, 73, busca sempre se basear nas orientações dadas a partir de estudos científicos devidamente verificados. Desde a chegada da pandemia, ela sai de casa o mínimo possível.
Morando apenas com a irmã no bairro da Boa Vista, no Recife, tenta comprar tudo de que precisa por delivery e conta com a ajuda de filhos e netos. E, quando vai a algum lugar, põe a máscara no rosto sem deixar de levar o frasco de álcool em gel, mesmo tendo já tomado as duas doses da vacina contra o coronavírus.
“A gente não tem outra opção. É seguir o que a ciência recomenda. Se, até para a área médica, a pandemia trouxe situações que ela não entendia, por que eu vou achar que entendo e vou fazer alguma coisa por minha conta? Eu continuo sendo aquela pessoa que quer fazer a coisa certa. Se algo der errado, não quero que seja porque eu resolvi errar”, ressalta.
Ao usar redes sociais, Adelice diz que tenta desmistificar a desinformação quando se depara com alguma notícia falsa. “Todo mundo tem um pouco de credibilidade para alguém, nem que seja para uma, duas, três pessoas. E aquela pessoa que acredita em você vai assimilar aquilo. Se uma mentira for contada muitas vezes e por muita gente, ela acaba tendo um cunho de verdade”, observa.