Perda de emprego e renda na pandemia, não isolamento, deixa mulheres mais expostas à violência
O estudo ouviu presencialmente 2.079 pessoas com 16 anos ou mais, em 130 municípios, entre os dias 10 e 14 de maio
Ao contrário do que se pensou em um primeiro momento, não foi a quarentena junto com o agressor o principal fator para que as mulheres brasileiras sofressem violência na pandemia. Foi a falta de autonomia financeira, com a perda de emprego e renda, que mais as colocou em risco.
É o que mostra a terceira edição da pesquisa "Visível e Invisível - A vitimização de mulheres no Brasil", realizada pelo Datafolha a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O estudo ouviu presencialmente 2.079 pessoas com 16 anos ou mais, em 130 municípios, entre os dias 10 e 14 de maio.
Nos primeiros meses da pandemia, em 2020, o mundo viu aumentar o número dos casos de violência doméstica ao mesmo tempo em que os registros de boletins de ocorrência diminuíram. A explicação estava nos longos períodos de lockdown, que faziam as vítimas permanecerem mais tempo em casa junto aos agressores e as impedia de denunciar.
No Brasil, no entanto, aconteceu um fenômeno diferente. Isso porque o país como um todo não chegou a adotar um lockdown rígido e os índices de isolamento social foram baixos, explica Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum.
"Depois de um ano de pandemia, vimos que o que pesou foi a questão financeira. Temos um índice de desemprego recorde, metade da população em insegurança alimentar. Como a mulher coloca o marido para fora de casa se não tem dinheiro para os filhos comerem?", diz.
O home office, por exemplo, ficou restrito às mulheres mais abastadas. Só 26% dos entrevistados afirmaram que passaram a trabalhar remotamente em função da pandemia, índice concentrado naquelas com nível superior (41%), das classes A e B (45% e 37%).
"O trabalho remoto é um privilégio. A mulher mais vulnerável, negra, periférica, em idade reprodutiva, não pôde se dar esse luxo. Ou perdeu o emprego ou continuou saindo, porque os locais onde elas trabalham, os serviços essenciais, continuaram funcionando", afirma Bueno.
Entre as mulheres que sofreram violência, 25% afirmam que a perda de emprego e renda e impossibilidade de trabalhar para garantir o próprio sustento são os fatores que mais pesaram para a ocorrência da violência que vivenciaram, enquanto 22% destacam que a maior convivência com o agressor também contribuiu. No entanto, menos de 10% cita dificuldade de ir a delegacia.
A precarização das condições de vida é maior entre aquelas que sofreram violência: 62% das mulheres vítimas afirmaram que a renda familiar diminuiu. Entre as que não sofreram violência esse percentual foi de 50%.
Além disso, 47% das mulheres que sofreram violência também perderam o emprego. A média entre as que não sofreram violência foi de 29,5%.
A pesquisa não verificou diferenças entre as respostas de mulheres vítimas de violência e as demais sobre o tempo de permanência em casa.
O estudo também destaca que são as mulheres separadas e divorciadas que têm níveis mais elevados de vitimização (35%), em comparação com casadas (17%), viúvas (17%) e solteiras (31%).
Isso porque a tentativa de rompimento com o agressor pode aumentar as chances de as mulheres serem mortas. Ou seja, a separação é, ao mesmo tempo, uma tentativa de interrupção da violência, mas também o momento em que ela fica mais vulnerável.
"Às vezes a separação não acaba com o vínculo com o agressor, principalmente se tiver filhos. As relações também não são lineares, as pessoas separam, voltam. Sair da relação não anula o risco da violência, na verdade, aumenta", explica Bueno, que também acredita que as mulheres casadas podem se sentir mais inibidas em responder a pesquisa, o que ajudaria a explicar a diferença.
A pandemia fez aumentar também a violência intrafamiliar, que não era tão comum e costumava representar cerca de 1% dos casos. Agora, entre os autores de violência, além dos companheiros (25%), e ex-companheiros (18%), aparecem pais e mães (11%), padrastos e madrastas (5%), filhos e filhas (4%).
"Isso mostra que existe uma tensão dentro do lar como um todo. Não só aquela violência doméstica praticada pelo parceiro, mas por toda a família", diz Bueno.
Durante a pandemia, 1 em cada 4 mulheres brasileiras (24%) acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência ou agressão. Isso significa que cerca de 17 milhões de mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual.
Quando comparado com a pesquisa de 2019, há um leve recuo percentual, mas dentro da margem de erro, que é de 3 pontos para mais ou para menos (27% em 2019 e 24% em 2021), configurando estabilidade.
Houve queda nos registros policiais de lesão corporal dolosa, ameaça, estupro e estupro de vulnerável contra mulheres. Mas, em sentido contrário, a violência letal -feminicídio e homicídio de mulheres- apresentou crescimento no período.
Se formos considerar só a violência física, 4,3 milhões de mulheres (6%) foram agredidas com tapas, socos ou chutes. Ou seja, a cada minuto, 8 mulheres apanharam no país durante a pandemia.
Para homens e mulheres, as principais mudanças na rotina com a pandemia são a maior permanência em casa (52%), diminuição da renda familiar (48%), aumento do estresse no lar (44%), interrupção das aulas presenciais dos filhos (40%), perda do emprego (33%), e o medo de não conseguir pagar as contas (30%).
Tudo isso pesou mais para elas, sobrecarregadas com o trabalho doméstico e o cuidado com os filhos.
Além disso, 14% da população diz ter passado a consumir mais bebidas alcoólicas no último ano -dado que preocupa porque o consumo abusivo de álcool é um fator de risco em situações de violência doméstica.
O que não mudou é que as mulheres sofreram mais violência dentro da própria casa (49%) e os autores são pessoas conhecidas da vítima em 70% dos casos. As mulheres jovens e negras também continuam sendo as mais afetadas.
Após a agressão, 45% das mulheres não fizeram nada, 22% procuraram ajuda da família, 13% procuraram ajuda dos amigos, 12% denunciaram em uma delegacia da mulher, 8% procuraram a igreja, 7,5% denunciaram em uma delegacia comum, 7% das mulheres procuraram a Polícia Militar através do 190 e 2% ligaram para a Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180).
Entre as mulheres que não procuraram a polícia, 33% delas afirmaram que resolveram a situação sozinhas, 15% não quiseram envolver a polícia e 17% não consideraram importante fazer a denúncia.
A pesquisa também mostrou que a pandemia e restrição de circulação não reduziram os casos de assédio sexual. No último ano, 38% das brasileiras foram vítimas de algum tipo de assédio, o que equivale a 26,5 milhões de mulheres.
O mais frequente é a cantada ou comentário desrespeitoso quando estavam andando na rua. O ambiente de trabalho e transporte público são os ambientes mais hostis e propícios ao assédio às mulheres do que festas e baladas.
Nesse caso, a desigualdade racial fica ainda mais evidente: 52% das mulheres pretas no Brasil sofreram assédio no último ano, 41% das mulheres pardas e 30% das mulheres brancas. Ou seja, enquanto mais da metade das mulheres pretas foram assediadas, o número cai para quase um terço das mulheres brancas.