'Acqua Movie': novo filme de Lírio Ferreira previu dramas de um Brasil sob Bolsonaro
Após 16 anos, cineasta pernambucano retoma temas e personagem do longa-metragem 'Árido Movie'
Em 2005, o cineasta pernambucano Lírio Ferreira acompanhou com sua câmera um repórter do tempo, interpretado por Guilherme Weber, adentrando o sertão nordestino para retornar à sua cidadezinha natal, onde o pai seria enterrado, em "Árido Movie". Como o nome indicava, aquela era uma história sobre a secura da região, o que contrasta com a abundância de água vista agora em "Acqua Movie", longa que retoma o personagem 16 anos depois.
De lá para cá, houve a transposição do rio São Francisco e a cidadezinha em questão, Rocha, foi afundada. Já o morto da vez é o próprio repórter de Weber, que agora motiva uma viagem aos rincões do país protagonizada pelo filho e pela viúva que deixou.
Vivida por Alessandra Negrini, Duda é uma documentarista empenhada em promover a causa indígena, que está na Amazônia quando recebe a notícia da morte do marido, pouco depois de uma discussão motivada por sua ausência na vida do filho. De volta a São Paulo, ela decide tentar reconstruir os laços com o garoto, acatando seu pedido para que as cinzas do pai sejam levadas ao Nordeste.
Começa aí um road movie que passeia por paisagens áridas e miseráveis, recortadas pelo sinuoso caminho de água que desemboca em Nova Rocha, cidade que prosperou com o líquido, embora esteja subjugada pelo coronelismo. A viagem de Duda emula a que o próprio diretor Lírio Ferreira fazia quando teve a ideia para "Acqua Movie".
Ele rumava para o Recife depois de participar de um festival de cinema em Triunfo, também em Pernambuco, com "Sangue Azul", de 2014. A aridez do caminho o fez perceber que os temas que havia levado às telas anos antes continuavam pulsando no interior do Brasil –o coronelismo, a demarcação de terras, a modernidade chegando ao sertão e o que ele chama de utopia da água.
Ferreira então pensou em fazer uma continuação direta de "Árido Movie", mas acabou transformando "Acqua Movie" muito mais num derivado, numa "extensão kardecista". Ele explica que os novos personagens são como reencarnações daqueles apresentados em 2005, ligados pelo tema comum da água.
"Eu venho trabalhando com a água há muito tempo. Desde 'Baile Perfumado' [seu longa de estreia, de 1996] já existia essa ideia. No 'Árido Movie' eu trabalhei com a falta de água, mas 'Sangue Azul' eu filmei numa ilha, cercado por ela", diz Ferreira. "Há uma frase que diz que, aonde chega, a água faz o resto. Meu trabalho é um pouco disso e, agora, com 'Acqua Movie', ela assume ares de personagem."
É o barulho de água escorrendo que abre o filme, e é ela que lava o corpo do personagem de Weber quando este é descoberto morto, no chuveiro, pelo filho. Também é a água que se apodera do celular do menino Cícero, um dos entraves para que ele e a mãe se reconectem, e que guia o carro de Duda pelas entranhas de Pernambuco.
"Esse é um tema que conversa com o momento que nós vivemos hoje e é algo universal. Nós não sabemos o que vai acontecer com a água doce na segunda metade desse século, não sabemos até quando ela vai durar. É essencial trazê-la à tona nas histórias que contamos", diz o diretor.
Para além da questão hídrica, a preservação dos povos originários e a demarcação de suas terras é outro assunto tratado com urgência em "Acqua Movie", por meio da personagem de Alessandra Negrini. A atriz, aliás, tem forte atuação política, em especial no que diz respeito aos indígenas.
No Carnaval do ano passado, ela chegou a causar controvérsia ao sair pintada como índia para um desfile. Atacada nas redes sociais, ela foi defendida por associações e líderes indígenas que a agradeceram por emprestar sua voz e projeção à causa. Ela explica, em conversa para falar de "Acqua Movie", que teve o aval e que estava acompanhada por indígenas naquilo que era muito mais um protesto do que uma festa.
A causa indígena sempre teve grande importância para Negrini, por razões que ela considera óbvias, humanitárias. "Se você tiver o mínimo de inteligência, você vai ser tocado por essa questão", afirma. Segundo ela, a destruição das terras e dos povos indígenas é a "destruição simbólica do nosso país, para além da física, do derramamento de sangue".
Mesmo com esse assunto e o desmatamento se tornando especialmente latentes sob o governo Bolsonaro, que tem Ricardo Salles à frente do Ministério do Meio Ambiente, "Acqua Movie" foi concebido quando o atual presidente ainda era uma ideia distante do Palácio do Planalto.
Imaginado há dez anos e roteirizado em 2016, o filme foi se desenvolvendo enquanto Bolsonaro flertava com o Executivo, mas sem ter muita credibilidade. As filmagens acabaram meses antes das eleições, com desfecho não previsto por Lírio Ferreira. Ele agora vê uma enorme carga de contemporaneidade na história de "Acqua Movie".
Ele lembra como exemplo uma cena em que o prefeito autoritário de Nova Rocha dá ao menino Cícero um canivete com a bandeira do Brasil, para que ele defenda o que diz ser dele. "É um sentimento que sempre existiu, mas veio às claras agora com Bolsonaro", diz Ferreira.