Animação

No Festival de Annecy, "Meu Tio José" revive a ditadura militar

Longa-metragem baiano é inspirado no caso real envolvendo o tio do diretor Ducca Rios

Filme "Meu Tio José" - Divulgação

Misturando realidade e ficção, “Meu Tio José” vai expor para o mundo as feridas ainda não cicatrizadas da ditadura militar brasileira. Dirigido por Ducca Rios e com voz original de Wagner Moura, o longa-metragem baiano compete no Festival Internacional de Cinema de Animação de Annecy, na França. 
 
O mais importante evento destinado aos filmes de animação no mundo ocorre desta segunda-feira (14) até 19 de junho, em formato híbrido - parte online, parte presencial. Ao lado de “Bob Cuspe – Nós Não Gostamos de Gente”, de Cesar Cabral, a produção nordestina representa o Brasil na mostra competitiva Contrechamp, uma das mais relevantes do festival. 

“A ficha não caiu ainda”, aponta Ducca Rios, que afirma ter perdido as palavras quando recebeu o email com a notícia de que seu filme havia sido selecionado para Annecy. “Esse é o sonho de todo animador. Chegamos a um outro patamar. Não quero nem pensar em premiação neste momento, porque só o fato de estar no festival já é uma vitória”, comemora.

Em seu primeiro longa-metragem, o diretor leva até o público uma trama inspirada numa história pessoal. Seu tio, José Sebastião de Moura, foi um ex-guerrilheiro assassinado, em 1983, em circunstâncias nunca esclarecidas. Ducca tinha apenas dez anos de idade quando o crime aconteceu, mas consegue se lembrar do impacto que isso causou nas vidas de todos ao seu redor.

“O atentado que meu tio sofreu é uma inquietação que eu tenho desde muito cedo, porque criou um sofrimento muito grande na família. Como o caso nunca foi solucionado oficialmente, resolvi criar minhas próprias respostas através da arte”, aponta. No filme, a história de José é contada através do olhar de uma criança, seu sobrinho Adonias, alter ego do cineasta. 

Membro do grupo de esquerda Dissidência da Guanabara, José participou do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, em 1969. Para fugir da repressão, passou dez anos exilado fora do País. “Durante muito tempo, meu tio era alguém distante. Ouvia falar das suas histórias e, para mim, ele era meio que um super-herói. De volta ao Brasil, era uma figura calada e, aos poucos, foi se aproximando muito da gente. Me ensinou a mergulhar, a soltar pipa e era um desenhista muito bom. Foram só dois anos de convivência, mas muito intensos e felizes, até que esse crime brutal mudou tudo”, relembra.

Ducca Rios, diretor (Foto: Maria Luiza Barros/Divulgação)

Em paralelo à trama de José, a animação retrata o cotidiano do menino José e seu convívio com a família e os amigos. “Eu quis criar um paralelo entre a ditadura e o universo da criança. A escola é representada como um quartel, onde a diretora se comporta como um general. Há também o bullying, que não aconteceu comigo na vida real, mas eu quis inserir como algo que representasse a repressão para os pequenos”, explica. 

Ao mergulhar na pesquisa para a animação, Decco descobriu fatos novos sobre o tio. “Uma das coisas mais legais é a relação dele com o poeta Torquato Neto. Não sei qual era o nível de amizade, mas quando fui pedir autorização à família para usar o nome dele no projeto, soube que havia uma poesia inédita dedicada nominalmente ao José, que a gente está lançando junto com o filme”, revela. 

O elenco do longa conta com nomes como Tonico Pereira, Lorena Comparato e Wagner Moura, que dá voz ao personagem José. Segundo o diretor, o ator protagonista da série “Narcos” se interessou imediatamente pelo projeto. “Tínhamos tudo gravado, mas esperamos nove meses pelo Wagner, que estava dirigindo o primeiro filme dele. Não foi só pelo nome de peso que ele carrega, mas porque ele é de fato um dos melhores atores brasileiros que existem hoje. Foi uma experiência genial trabalhar com ele e com os demais atores”, defende.