Violência

Governo do Rio não ofereceu ajuda a familiares de 27 mortos no Jacarezinho

Traumas e dor rondam as vidas de moradores da comunidade carioca

Ação da polícia no Jacarezinho teve alto número de mortos - Mauro Pimentel/ AFP

Uma semana havia se passado desde o massacre na favela do Jacarezinho e Gisele, de 22 anos, ainda não conseguia sair do próprio quarto. Não comia nem era capaz de olhar para a sogra, pela semelhança com o marido. Só chorava e dizia que queria se matar.

A jovem, que teve o nome trocado por risco de represálias, ficou viúva na operação policial daquele dia 6 de maio e está entre os familiares dos 27 mortos por agentes do estado que nunca foram procurados pela Secretaria de Vitimados do Rio de Janeiro.

Hoje sob comando do governador Cláudio Castro (PSC), a pasta foi criada em 2019 pelo antecessor afastado, Wilson Witzel (mesmo partido), para oferecer auxílio social e psicológico aos parentes e vítimas da violência urbana fluminense.

Conforme o próprio governo informou à reportagem, a família do policial civil André Frias, baleado por criminosos logo no início da incursão na comunidade, é a única a quem a pasta está dando atendimento social e clínico dentre os mortos.

Aos 48 anos, o agente deixou a esposa, um enteado de dez anos e a mãe, acamada há três anos após sofrer um derrame cerebral. A Polícia Civil prestou assistência a eles, concedeu uma promoção póstuma a Frias por bravura, e colegas de farda fizeram uma vaquinha.

Também receberam auxílio da secretaria de Vitimados dois passageiros feridos no metrô durante o tiroteio, quando um projétil atravessou uma janela do vagão. 

Rafael Moreira, 33, foi atingido por estilhaços de vidro e Humberto Gomes Duarte, 20, por um tiro de raspão no braço.

Questionada desde a última semana, a pasta não detalhou o tipo de suporte dado aos parentes de Frias e aos passageiros. Também não respondeu por que não ofereceu atendimento às outras 27 famílias de mortos na ação e quais são os critérios utilizados para selecionar os atendidos.

O órgão já ofereceu ajuda a parentes de vítimas de ações da polícia antes, como o adolescente João Pedro Matos, 14, morto dentro de casa durante uma incursão em São Gonçalo em maio de 2020, e a menina Ágatha Félix, 8, baleada no Complexo do Alemão em 2019.

As investigações dos dois casos descartaram a versão de confrontos com criminosos e concluíram que os agentes erraram – no primeiro, três policiais civis foram indiciados por tentativa de homicídio culposo e, no segundo, um PM foi denunciado por homicídio doloso. Em ambos, o governo afirmou que disponibilizou ao menos suporte psicológico às famílias.

A secretaria de Vitimados foi criada em agosto de 2019 e, no primeiro ano, acompanhou 620 pessoas. No mês seguinte, Cláudio Castro a rebaixou a subsecretaria, mas recentemente voltou atrás. A secretária é a tenente-coronel da PM Pricilla Azevedo, empossada de novo nesta segunda (14).

Sobre a operação do Jacarezinho, a mais letal da história do Rio de Janeiro, as apurações seguem em curso pela Polícia Civil (responsável pela ação) e pelo Ministério Público. 

A corporação chegou a divulgar que quase todos os mortos tinham registros criminais para justificar os óbitos. Moradores, porém, dizem que alguns não eram envolvidos e que parte deles foi baleada mesmo após se render.

Sem o apoio formal, o impacto do luto ainda é latente entre os familiares, em sua maioria mulheres. Oito das vítimas, por exemplo, não têm o nome do pai registrado na identidade.

A mãe de Richard Gabriel Ferreira, 23, passou a dormir sob efeito de remédios, lidando com os outros filhos pequenos que pedem para sair da favela. 

Outra mãe se desespera tendo que sustentar as duas netas pequenas que o filho deixou, sem conseguir pagar o aluguel e enfrentando a dor e ameaças ao telefone.

Pensando nelas, a estudante Lorrane Sequeira, 22, criou por conta própria uma rede de apoio que batizou de "Abrace uma Mãe", oferecendo ajuda psicológica voluntária e doações de remédios ou comida às mulheres. 

"Começaram a chegar muitas fake news, muitos insultos a elas. A ideia era reforçar que não é culpa delas", diz. Os moradores em geral também relatam que ainda lidam com "flashbacks", insônia e sustos com qualquer barulho repentino. 

Profundamente traumatizada, uma menina de nove anos que presenciou uma das mortes em sua própria cama, ensopada de sangue, começa a gritar quando vê alguém vestido de preto, segundo um familiar.

"Ainda tem muito impacto psicológico. Quando passa avião as crianças já ficam achando que vai ter operação de novo. Algumas estão afastadas da comunidade", conta Leonardo Pimentel, presidente da associação de moradores.

Poucos dias após o massacre também surgiu outro projeto, da Prefeitura do Rio. "Assim que vi a notícia dos 28 mortos, lembrei de um estudo que mostrava que um homicídio impactava no mínimo cinco pessoas. Numa operação dessa dimensão, é muita gente adoecida de uma vez", diz o secretário de Juventude, Salvino Oliveira, da gestão Eduardo Paes (PSD).

Ele se refere a uma estimativa feita pela cientista social Dayse Miranda, uma das autoras da pesquisa "As vítimas ocultas da violência na cidade do Rio de Janeiro", ao site G1 em 2019.

A partir dali, articulou um projeto com diferentes organizações e lideranças locais, como o LabJaca (laboratório de dados da comunidade).

O resultado é que cerca de 29 jovens de 14 a 25 anos diretamente afetados – que perderam amigos ou familiares ou que presenciaram a operação – estão participando de uma espécie de formação em saúde mental da Unicef, das Nações Unidas.

Eles receberam um "kit" com celular, internet e apostilas sobre temas como autocuidado e comunicação não violenta e participam de rodas de conversa virtuais, que depois poderão replicar aos colegas.

Em paralelo, vão ser atendidos semanalmente por 19 psicólogos voluntários da ONG Casa do Menor, muitos deles também de favelas, por três meses. A ideia é que depois disso eles sejam absorvidos por serviços do SUS como o Cras (Centro de Referência da Assistência Social).

"A exposição contínua desses jovens à violência marca para sempre a formação subjetiva deles", diz a psicóloga Diny Sousa, que coordena a equipe. 

"O atendimento psicológico é muito importante para se reconhecer que eles não são só vidas a serem ceifadas, mas sujeitos de direitos, que precisam ser amparados."