Campanhas de Lula e Ciro querem mais economia e menos pautas identitárias
Dirigentes do PT reconhecem que a exploração da chamada pauta de costumes afastou da legenda uma parcela de seus eleitores
Um dilema ronda o campo progressista: sob a guarida da esquerda, as pautas identitárias emergiram com força na última década, mas elas são um espantalho eleitoral num país que já pendia ao conservadorismo antes mesmo da ascensão evangélica. Seria o caso de deixá-las em segundo plano como estratégia para recuperar o Palácio do Planalto?
Dirigentes do PT reconhecem que a exploração da chamada pauta de costumes afastou da legenda uma parcela de seus eleitores –mesmo aqueles identificados com Luiz Inácio Lula da Silva. Na campanha de 2022, o plano da sigla é neutralizar a discussão que envolve aspectos religiosos e redirecionar o foco para questões econômicas e sociais.
No PDT de Ciro Gomes, pré-candidato de lastro esquerdista que tem feito acenos à centro-direita, a disposição é a mesma.
Se em 2002 a campanha de Lula distribuiu em portas de igrejas a Carta aos Evangélicos, um panfleto em que o petista clamava por mais "princípios cristãos para o nosso povo", em 2021 ele tuíta:
"Nem militar nem evangélico têm que ser tratados como gado. Vamos fazer discurso pro cidadão. Trato evangélico com o mesmo respeito que trato católico e trato militar, com o respeito que trato o civil. Quem vai votar é o cidadão", disse no último dia 13 o ex-presidente que, em 2022, terá o desafio de se reaproximar de um eleitorado que já lhe foi mais reverente.
Evangélicos deram a maioria de seus votos a Lula nos segundos turnos de 2002 e 2006. Essa maré foi virando na medida em que as bandeiras identitárias (que incluem demandas dos movimentos LGBTQIA+, negro e feminista) ganham fôlego no debate nacional. Em 2014, Aécio Neves (PSDB) ganhou por pouco de Dilma Rousseff (PT) no segmento e, quatro anos depois, com respaldo de todos os principais pastores do país, Jair Bolsonaro (à época no PSL, hoje sem partido) teve a predileção de 7 em cada 10 evangélicos.
O cálculo dos petistas para recuperar terreno nesse eleitorado leva em conta o perfil da população evangélica: ainda que esse grupo identifique Bolsonaro como fiador de alguns de seus valores, 65% deles são brasileiros de baixa renda que podem ser atraídos pela plataforma que Lula pretende defender na campanha.
"O papel de um partido que se propõe a governar um país não é discutir o credo das pessoas, a religião, os valores ou a Bíblia. É oferecer condições para que elas possam viver dignamente, com emprego e renda", diz a presidente do PT, a deputada federal Gleisi Hoffmann (PR).
Ainda que planejem concentrar o debate na economia, os petistas admitem que a pauta conservadora pode ser um campo minado durante o pleito. "Uma parte do credo das pessoas foi utilizada pra desvirtuar posições políticas", afirma Gleisi. "Nós temos posições muito claras. Pregamos o respeito à população LGBTQIA+. Não temos defesa programática do aborto, nem nunca tivemos. Não temos problema em discutir esses temas, mas eles não podem ser usados para desviar o povo do ponto principal da responsabilidade de um governo."
Gleisi diz que Lula e o PT não têm "nenhuma pretensão de entrar na questão religiosa" em 2022. Outros integrantes da sigla defendem que o partido faça uma articulação em conversas reservadas com líderes evangélicos para convencê-los de que os governos petistas não atentaram contra a liberdade das igrejas ou de setores conservadores.
Em junho, o ex-presidente se reuniu com Manoel Ferreira, bispo primaz do poderoso Ministério Madureira da Assembleia de Deus, no sítio de um aliado petista. A foto dos dois irritou pastores como Silas Malafaia, que já passeou pelas trincheiras petistas em 1989 e 2002, mas agora diz que a ruptura com a sigla é definitiva.
O PT também estaria atrás de outros líderes evangélicos de peso, como R.R. Soares e Valdemiro Santiago. Sinais de insatisfação da Igreja Universal com o governo Bolsonaro também alimentam a esperança de uma reconciliação com o bispo Edir Macedo, ex-aliado que em 2018 vestiu a camisa bolsonarista.
"Lula disse que conversará com todo mundo, sem discriminação. Óbvio, com quem desejar dialogar sobre um projeto para o país", diz o pastor presbiteriano Luis Sabanay, coordenador do Nept, o núcleo evangélico da sigla.
"As recentes pesquisas mostram uma significativa mudança de opinião, desfavorável a Bolsonaro no público evangélico. Minha opinião é que, ao contrário, Lula deverá ser procurado por muitos, inclusive lideranças significativas evangélicas."
As duas últimas pesquisas Datafolha revelam empate entre o petista e o atual presidente no voto evangélico.
Ainda que a cúpula pastoral evangélica resista às investidas do PT, a legenda trabalha para avançar nas bases desse eleitorado. A ideia é conjugar a política social de Lula aos valores religiosos.
O senador Jaques Wagner (PT-BA) prevê uma "campanha tensa" e defende que os petistas façam um "ajuste fino para não cair em armadilhas" de Bolsonaro na exploração de temas caros aos conservadores.
Um ajuste na campanha, segundo Wagner, depende de uma modulação em que o PT possa advogar por valores da tolerância e de minorias sem alienar evangélicos e outros grupos conservadores. "Nossa obrigação é respeitar os direitos de todos, o que não significa que estejamos patrocinando qualquer tipo de comportamento."
A questão é se esse discurso vai colar. Pastores hoje alinhados a Bolsonaro garantem que farão de tudo para não deixar o povo evangélico esquecer o papel do PT nas guerras culturais. Gostam de lembrar, por exemplo, de um ato em 2018 com a nata petista. Lula, ainda pré-candidato à Presidência, riu quando dois homens se beijaram no fim de um número de dança.
No fim de junho, o núcleo evangélico do PT reuniu figurões do partido, como Haddad e Aloizio Mercadante, num encontro virtual em que a fala mais forte ficou a cargo da deputada Benedita da Silva (RJ). Ela, que já disse à reportagem ter introduzido o hábito de orar no Congresso, participou da primeira bancada evangélica, com os constituintes dos anos 1980, e é exemplo bissexto de parlamentar de esquerda na composição atual.
Sua oratória é uma bússola para o discurso que Lula deseja adotar com o segmento. Dirigindo-se a "irmãos e irmãs de fé", Benedita vai direto no calo econômico: "Temos o salário mínimo com reajuste irrisório, negação para o pagamento do auxílio emergencial no valor justo, preços altos da comida e do gás. Cada vez mais pessoas passando fome e dificuldades. Os evangélicos sentem isso, vivem isso e se lembram de como eram as suas vidas durante os governos do PT".
Para o pastor Alexandre Gonçalves, presidente dos Cristãos Trabalhistas, do PDT, há um mea-culpa a ser feito por um progressismo que passou décadas esnobando evangélicos. "Se houve deturpação por parte de uma extrema direita raivosa, reacionária, também há de uma parte da esquerda que quer, na verdade, um Estado ateu, desrespeitando a fé do povo, que faz parte da nossa cultura."
O próprio Ciro, nome do partido para 2022, assume que falhou. "Me penitencio de não ter sabido me relacionar, durante muito tempo, com a religiosidade popular", diz.
Como Lula, de quem foi ministro, ele se declara católico. Ciro conta que, após se cercar de "estudiosos sérios deste tema", tocou-se que cometeu "o mesmo erro de certa suposta elite intelectual e política que não entende que nas igrejas estão pessoas que sofrem, privadas de bens materiais e intelectuais".
Parte desse topo da pirâmide, segundo o pedetista, "ainda não percebe que é mais correto e mais fácil entender estas pessoas através da fé do que da política".
Na mesma semana de junho, Ciro e Lula fizeram gestos ao eleitorado religioso que triplicou de tamanho desde a redemocratização e hoje corresponde a 30% dos brasileiros.
Em vídeo assinado por João Santana, ex-publicitário do PT, o ex-governador do Ceará segura a Bíblia e a Constituição. Afirma que os dois livros não são conflitantes e prega: "Cada um de nós, criado à imagem e semelhança de Deus, carrega dentro de si a centelha de uma vida maior".
Três dias depois, Lula publicou uma série de tuítes que apelam a quem crê. "Não acredito em um cristão que utiliza o nome de Deus em vão. Inclusive se o Bolsonaro acreditasse em Deus ele não mentia tanto", disse.
Ainda que optem por manter a agenda moral em banho-maria, candidatos vistos como progressistas pela cúpula pastoral não terão vida fácil. "A Frente Parlamentar Evangélica fará um mantra aos eleitores de como as pautas conservadoras continuam sendo afrontadas por toda a esquerda", diz o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ).