Jogos Olímpicos

Angústia de Biles e Osaka mostra que esporte na infância deve divertir sem virar fardo mental

Nesta terça-feira (27), ginasta americana abandonou final por não estar bem mentalmente

Simone Biles - Loic Venance / AFP

Uma das competidoras mais aguardadas das Olimpíadas de Tóquio, a ginasta Simone Biles surpreendeu o mundo ao abandonar a final da ginástica por equipes nesta terça (27), após obter uma nota ruim na prova do salto.

Horas depois, a americana de 24 anos explicou, sem rodeios, o que aconteceu: disse que não confia mais em si mesma e que precisa lutar com a sua própria mente para proteger sua saúde mental e voltar a se divertir com o esporte.

No mesmo dia, a tenista Naomi Osaka, uma estrela no país-sede dos Jogos, também deixou claro que seu malogro olímpico pode ter a ver com a alta expectativa depositada sobre ela. "Definitivamente sinto que houve muita pressão sobre mim desta vez."

Osaka lembrou ainda do motivo pelo qual costuma usar fones de ouvido em torneios: "Eles ajudam a diminuir minha ansiedade mental".

A angústia de Biles e Osaka levantou o debate sobre a pressão psicológica sofrida por atletas de elite, mais ainda em modalidades em que os competidores começam muito cedo. Participam dessas Olimpíadas nadadoras de 14 e 15 anos, uma tenista de mesa de 12 e skatistas de 12 e 13.

Uma delas, a maranhense Rayssa Leal, apelidada de Fadinha, foi medalhista de prata e cativou o público fazendo dancinhas entre uma volta e outra na final do street skate feminino.

"Ela parece estar se divertindo ali. Esse é o fundamento da criança. Tem que gostar do que está fazendo. Mas não queremos que a Rayssa desista do esporte no próximo ciclo olímpico, que tenha as mesmas queixas da Simone Biles", diz o educador físico e fisioterapeuta Rafael Ferrer, coordenador da pós-graduação em Fisioterapia Esportiva em Crianças e Adolescentes do CBI (Child Behavior Institute) de Miami.

Segundo ele, na infância o esporte deve ter caráter educacional, trabalhar habilidades motoras e ser uma fonte de diversão. Tornar-se um atleta de elite, quando acontece, deve ser uma consequência, e não o propósito inicial. "Quando há confusão desses objetivos e a gente já insere a criança no meio de competição, exigindo resultados e com cobranças excessivas, podemos ter lesões precoces e abandono do esporte."

"O percentual de atletas que atingem o nível olímpico é muito pequeno. Quantas crianças e adolescentes a gente perde nesse caminho, que acabaram abandonando o esporte por causa da cobrança dos pais, de treinadores?", questiona Ferrer.

Hoje, graças a estudos científicos e à maior presença de profissionais de saúde nas equipes esportivas, são menos comuns casos de treinadores que abusam física e psicologicamente de atletas mirins, diz Ferrer. Mas ainda acontece. "Há menos despreparo. Mas a gente ainda vê muito atleta exposto a regimes de treino maiores do que sua capacidade."

O COI (Comitê Olímpico Internacional) recomenda que os atletas comecem a praticar esportes de alto rendimento a partir dos 15 anos. Algumas modalidades, contudo, costumam ter adolescentes mais jovens. Entre elas, skate e patinação artística, que são esportes mais lúdicos, que as crianças costumam praticar desde cedo, como brincadeira.

Para as que se tornam elite, a recomendação é adequar o volume, o tipo de treino e as expectativas à faixa etária da criança, dar intervalos para que o corpo e a mente dela se recuperem -não vale usar esse tempo para ver e estudar jogos da modalidade- e garantir que ela tenha tempo para se dedicar à escola e fazer outras coisas em sua rotina.

Em resumo, a criança não pode ser tratada como um adulto pequeno. "Tem gente que acha que é só dividir o treino de um adulto por três", diz o ortopedista pediátrico Nei Botter Montenegro, coordenador do Programa de Medicina Esportiva Infantojuvenil do Hospital Albert Einstein.

"Não é verdade que a criança e o adolescente, só porque correm bastante, estão prontos para qualquer atividade física. O esqueleto deles está em desenvolvimento. O treino errado ou excessivo pode causar lesões nas placas de crescimento, como no caso do punho na ginástica artística."

Outro exemplo que ele dá é de quedas no skate, que podem gerar um trauma mais grave na criança do que em um adulto que já atingiu a maturidade neurológica. Por isso o uso de capacete nesse esporte olímpico é obrigatório para atletas com menos de 18 anos.

Montenegro cita estudos que mostram que esportes como ginástica artística, artes marciais e atletismo são mais propensos a gerar lesões em crianças e adolescentes. Também por isso, estabeleceu-se uma idade mínima para a ginástica artística em Olimpíadas: 16 anos. No skate, também se discute um caminho parecido.

Para além da sobrecarga física, ele cita a preocupação com as "lesões psicológicas", algo que aparece com frequência no atendimento de saúde mental a atletas muito jovens, no programa do hospital. "Temos muitas surpresas. Às vezes a criança entra na sala e começa a chorar, diz que não pode desapontar o pai, o treinador. Não foi dada a chance de ela optar", relata.

Para o médico, eventos como as Olimpíadas ajudam a despertar o interesse de muitos pais em matricular seus filhos em aulas de esportes. "Isso é ótimo, mas dessa legião só vai sair um ou outro ícone como a Rayssa. O que a gente quer, como sociedade, é criar pessoas ativas. Se a experiência for prazerosa, a criança vai praticar por toda a vida."

Nove dicas para a prática saudável de esportes por crianças e adolescentes:

1- O foco do esporte nessa faixa etária deve ser em se divertir e aprender habilidades para a vida, e não apenas em competição e desempenho;
2- Praticar esportes diferentes, ao menos até a puberdade, reduz o risco de lesões e estresse. A especialização em uma só modalidade deve ocorrer mais tarde;
3- Uma fórmula simples para definir o limite semanal de treino é calcular o número de horas correspondente à idade da criança. Aos 11 anos, ela deve treinar até 11 horas semanais, de preferência distribuídas ao longo de cinco dias;
4- Crianças precisam descansar totalmente de atividades esportivas ao menos dois dias por semana. Nesses dias, devem fazer outras coisas (ler, brincar etc.);
5- Elas devem tirar ao menos três meses de folga por ano do esporte de interesse, mantendo-se ativas em outras atividades. O ideal é que sejam três períodos de um mês;
6- Cuidar da quantidade e da qualidade do sono é fundamental. Crianças devem dormir de 9 a 12 horas, e adolescentes, de 8 a 9;
7- O esporte não deve prejudicar a escola. As duas trajetórias devem andar juntas;
8- A decisão de competir em um esporte de alto rendimento deve ser da criança, não deve nascer das expectativas de pais ou treinadores;
9- Os pais devem monitorar de perto o ambiente de treino dos filhos, para garantir que eles não sofram abusos físicos e psicológicos.

Fontes: Sociedade Americana de Pediatria, fisioterapeuta e educador físico Rafael Ferrer