Afeganistão, China e vacinas mostram um Biden mais Trump do que Trump
Incensado como a salvação após os quatro anos de turbulência sob Trump, o presidente Joe Biden tem tomado decisões que desagradam aliados
Incensado como a salvação do mundo ocidental após os quatro anos de turbulência, mentiras e reviravoltas da Casa Branca sob Donald Trump, o presidente Joe Biden tem tomado decisões que desagradam aliados e deixam apoiadores atônitos.
Depois do republicano, não seria difícil ter apoio da maioria esmagadora dos líderes que importam no Ocidente, com as notórias exceções de Jair Bolsonaro e um ou outro autocrata escondido no orçamento da União Europeia, e contar com a simpatia da mídia liberal predominante.
Só que o bastante longo período de namoro com Biden já dá sinais desgaste devido às suas decisões, que substituem o caráter errático do republicano por uma assertividade em temas nos quais eles basicamente concordam.
Em resumo, Biden é mais Trump que Trump, ao menos na sua inserção prática no mundo.
O exemplo do Afeganistão é dos mais claros. Após passar a campanha eleitoral criticando o republicando por ter tratado a pão e água os aliados europeus, Biden fez uma série de mesuras diplomáticas, culminando na sua turnê europeia de junho.
Nela, mais do que juras de amor e cooperação com a União Europeia e a Otan, aliança militar liderada pelos EUA e desprezada por Trump, Biden buscou cooptar os colegas para se unir a ele no grande jogo contra a China –e, por tabela, a Rússia.
Além de desagradar alguns sócios, interessados em manter bons negócios com Pequim e Moscou, um assunto ficou engasgado: a decisão unilateral de Biden de deixar o Afeganistão e a consequente vitória taleban.
Afinal de contas, nos estertores da ocupação de duas décadas, havia talvez 3.500 americanos por lá, ante o dobro de contingente de países da Otan.
Todos queriam sair, é claro, mas não houve nenhuma discussão com aqueles que embarcaram na aventura americana em 2001, britânicos à frente. Não é casual a grita na classe política do Reino Unido sobre o inominável visto na pista do aeroporto de Cabul.
Concorre para isso também a opinião pública europeia, sempre mais sensível a temas humanitários do que a americana. Eleição tem em todo lugar.
Significativamente, Biden ratificou o acordo assinado por Trump em 2020, que era no mínimo otimista acerca dos compromissos que os Talebans assumiram, de buscar negociação com o governo de Ashraf Ghani e respeitar a cartilha ocidental de direitos humanos.
A primeira parte é autoexplicativa, com Ghani gravando vídeos do exílio em Abu Dhabi. O fato de o tsunami militar operado pelo Taleban em duas semanas ter sido visto como uma marolinha potencial pela Casa Branca é uma triste repetição de padrões no trato de dados de inteligência.
Resta saber se foi incompetência para menos, como no caso da debacle em Benghazi em 2012, ou má-fé para mais, como na invasão de 2003 do Iraque.
Já a ideia de um Taleban moderado, reafirmada a cada entrevista dos barbudos senhores do poder em Cabul, é colocada em xeque a cada notícia de repressão e a própria ideia de reintrodução da lei islâmica no país.
O caso afegão é o mais gritante, mas longe de ser único. A relação com a China passou de uma atabalhoada abertura de frentes por todos os lados, nos salvos da Guerra Fria 2.0 inaugurada por Trump em 2017, para um confronto aberto.
As expectativas de que Biden tentaria um diálogo com os chineses, de resto sempre exageradas pelos apologistas do Partido Democrata no espectro à esquerda, foram substituídas por uma realidade dura.
Parte disso é a necessidade do presidente de se mostrar firme, mesmo quando errado, já que o fantasma do "Sleepy Joe" impingindo a ele por Trump não descansa. Assim, quando os chefes da diplomacia da China e dos EUA quase saem aos gritos num fim de mundo no Alasca, as cartas estão na mesa.
Biden pode até encontrar-se com Xi Jinping, como fez com um impassível Vladimir Putin, o russo a quem chamara de assassino. Mas o fato é que a lógica de um mundo multipolar cada vez mais rachado entre EUA e a China, com a Rússia a tiracolo, só faz crescer.
Todas as críticas ao "América primeiro" de Trump podem ser feitas a Biden na gestão da questão das vacinas contra a Covid-19. Nesta semana, ao reafirmar que a terceira dose para os americanos vem antes de ajuda a outros países, o presidente deixou claro sua linha de ação.
Ele está errado? Se você for um apoiador que o via como uma espécie de cavaleiro reluzente a tirar os EUA das trevas do isolacionismo e jogar o país numa era renovada de multilateralismo, sim. É nesse dilema que aliados e liberais americanos se veem hoje.
Se você considerar que metade do país que ele governo pensa como Trump e a própria história americana é um longo compêndio de posições solitárias que refletem sua posição geopolítica continental, protegida, intercalado com momentos de imperialismo envergonhado, há lógica no rumo de Biden.
Claro, Cabul cobrará seu preço em eleitores-pêndulo, seja entre os que veem uma humilhação americana, seja pelos que se horrorizam com corpos caindo do céu. Por outro lado, seu desassombrado discurso sobre a crise, no qual lavou as mãos, traz também uma franqueza pouco usual, ainda que de ocasião.
Por óbvio, Biden tem trunfos, a começar por não ser um bufão repugnante como Trump é visto. Sua insistente agenda ambiental também é um ativo importante. Mas, a cada dia, parece mais uma versão focada do vilão predileto dos liberais.