Arquitetura

Memória: arquitetura moderna em Pernambuco resiste ao tempo

Construções icônicas no Estado revelam uma identidade própria na paisagem urbana

Edifício Califórnia, em Boa Viagem - Foto: Arthur Mota/Folha de Pernambuco

“A cidade não é um lugar, é a moldura de uma vida, um chão para a memória”. Na frase extraída do romance “Passageiro frequente”, de Mia Couto, a reflexão pode até alcançar prédios e casas de linhas retas, erguidas entre as décadas de 1930 e 1970 no Recife, que revelam a firmeza do traço arquitetônico moderno. Um conteúdo histórico, que perdeu neste mês dois colaboradores dessa arquitetura no Estado: os arquitetos e pesquisadores Wandenkolk Tinoco e Geraldo Gomes.

 



Se o nome deles soar estranho, o mesmo não acontece com suas obras. O edifício Villa Mariana, no bairro do Espinheiro, na Zona Norte do Recife, tem o verde nas varandas, formando o que o arquiteto Wandenkolk chamava de edifício-quintal. Detalhe capaz de aproximar qualquer morador à rotina de uma casa no Nordeste. 

Geraldo, por sua vez, contribuiu sobre técnica construtiva na formação de vários profissionais. Conduziu os trabalhos de restauros do Mercado de São José e, entre inúmeras pesquisas, estava levantando o “obituário” dos endereços modernos na Capital pernambucana.

Identidade preservada?
Para o arquiteto e urbanista Roberto Salomão, além da perda intelectual sentida nos últimos tempos, o Recife presencia a escassez de paisagem que expressa uma identidade cultural própria. “A gente perde a referência de Cidade quando não temos mais esses edifícios que dialogaram com as diversas gerações de recifenses. Não é preservar para congelar a Cidade e, sim, somar novas camadas de história”, defende ele, ao relatar situações de abandono, como a do edifício Holiday, de 1957, em Boa Viagem.

Edifício Hollyday (Foto: Rafael Furtado/Folha de Pernambuco) 


Ainda segundo o arquiteto, pode-se afirmar que o genuíno “edifício pernambucano” se comunica com o clima, introduz o verde nas fachadas, oferece um peitoril ventilado e trabalha o conceito de “casa suspensa”. Tudo isso convivendo harmonicamente com o concreto aparente, o aço e o vidro, na sua forma simples, mas nunca simplória.

Não à toa, a produção pernambucana já foi reconhecida como pioneira por algumas publicações nacionais. Motivo para sempre existir o debate sobre a existência de uma “Escola do Recife”, com suas contribuições regionais e particularidades.

Arte por trás do concreto
O estilo surgiu no século 20, em confronto ao traço rebuscado, sob influência do modo de entender a arte discutida a partir da Semana de Arte Moderna de 1922. A maneira de projetar foi sendo adaptada ao contexto local, ganhando aspectos que todo pernambucano conhece bem.  

“O padrão da arquitetura era mais artesanal, com cerâmicas artesanais na fachada e azulejo decorado para contrastar com o branco. Nos anos 1970 tinha laranja, azul, tijolo e outros materiais. Os profissionais ousavam mais na qualidade de arte”, diz a doutora em arquitetura e professora Guilah Naslavsky. Mas tudo mudou a partir dos anos 1980. “As fachadas passaram a ser envidraçadas. Hoje, os arquitetos olham pouco para as questões climáticas e atuam com menos autonomia artística. Além disso, com a pandemia, percebemos que temos poucos espaços humanizados. É caro ter local para o verde”, acrescenta.

Edifício Bancipe - atual edifício Guararapes, no Centro do Recife (Foto: Melissa Fernandes/Folha de Pernambuco)


Convívio contemporâneo
Brasileiro tem mesmo memória curta e preservar conteúdo, em todas as áreas, nunca foi nosso forte. Ainda assim, muitos equipamentos resistem em direção aos cem anos dessas obras no País. O “Guia da Arquitetura Moderna no Recife”, da Docomomo Brasil, lista endereços icônicos, como o Santuário Nossa Senhora de Fátima (antiga capela do Colégio Nóbrega), erguido na década de 1930, no Centro do Recife, além da sede da Companhia Energética de Pernambuco (Celpe), na Boa Vista, com seu jardim de Burle-Marx.

Já o Edifício Califórnia, assinado por Acácio Gil Borsoi, na década de 1950, foi um dos primeiros exemplares de uso misto construído na Praia de Boa Viagem, com projeto inicial reservando espaço para restaurantes e cine-teatro. Enquanto isso, a Biblioteca Pública de Pernambuco, também no Centro, ostenta a arte dos azulejos desenhados. Área que também abriga o edifício Barão do Rio Branco, com seus azulejos de cor idealizados pelo arquiteto Delfim Amorim. Outro ponto de referência é o Edifício Acaica, na orla de Boa Viagem, erguido em 1957. O projeto, de Delfim Amorim, foi o primeiro em que ele teve a oportunidade de revestir grandes superfícies com azulejo.

Biblioteca Pública de Pernambuco (Foto: Paullo Almeida/Folha de Pernambuco)



Sobre a preservação de tantas memórias, o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Pernambuco (CAU-PE), Rafael Tenório, garante haver uma comissão de patrimônio que trabalha com projetos de políticas junto às instituições de defesa do patrimônio cultural no Estado.

“É preciso mudar a visão sobre a importância dessas obras como expressão cultural dos arquitetos e urbanistas pernambucanos e, consequentemente, da própria identidade de nossa paisagem urbana. Uma produção de uma importância singular, uma vez que além de trabalhar com os critérios universais da arquitetura moderna, inauguraram uma nova forma de pensar a arquitetura, apoiada, sobretudo, no que hoje conhecemos como a arquitetura bioclimática, adequada à realidade dos trópicos, como tão bem já falava nosso Armando de Holanda".