Misturar vacinas contra Covid-19 é seguro?
Em boa parte dos casos em que há a administração de uma terceira dose, isso significa um reforço vacinal com um imunizante diferente daquele utilizado nas primeiras doses
O Brasil aplicará terceira dose da vacina contra a Covid nos mais velhos a partir de setembro. O plano do Mistério da Saúde engloba todas as pessoas com mais de 70 anos ou imunossuprimidas e terá início no dia 15. O governo de São Paulo anunciou que incluirá todas as pessoas da faixa acima de 60 anos e começará no dia 6. Em São Luís, a administração da dose de reforço começou nesta quinta-feira (26).
Diversos países têm adotado essa estratégia, e em boa parte dos casos isso significa um reforço vacinal com um imunizante diferente daquele utilizado nas primeiras doses.
O nome técnico dessa combinação de vacinas é aplicação heteróloga e, até onde se sabe, ela é segura. Há testes sobre misturas desde os anos 1990, numa tentativa de combater o HIV. No caso específico da Covid, porém, ainda não há estudos completos com a terceira dose.
No Brasil, a aplicação heteróloga envolverá quase todos os idosos que receberem a terceira dose. Isso porque a maioria tomou Coronavac nas primeiras doses e, agora, poderão receber outro imunizante.
De acordo com o Ministério da Saúde, a fabricante de preferência para o reforço será a Pfizer, mas as vacinas da Janssen e Astrazeneca também poderão ser utilizadas. O governo de São Paulo disse que usará o imunizante que estiver disponível.
Nos dois casos, a dose adicional será aplicada em todas as pessoas elegíveis, independentemente do imunizante recebido nas primeiras aplicações.
Veja o que se sabe sobre o assunto:
É seguro misturar vacinas?
Até o momento, os poucos estudos disponíveis sobre o uso de uma vacina contra a Covid diferente da aplicada na primeira dose apontaram que a combinação é segura. Mas esses estudos tratam apenas de mistura de fabricantes na primeira e na segunda dose, não na terceira.
Um desses estudos saiu na prestigiosa revista The Lancet. Outro, um teste em roedores com regimes heterólogos, saiu na revista Nature Communications.
Um outro estudo publicado na revista The Lancet e feito com mais de 600 participantes adultos testou, em pessoas que tomaram a primeira dose da Astrazeneca, a aplicação da vacina da Pfizer como segunda dose.
Segundo os pesquisadores, houve resposta imune robusta, confirmando que a aplicação heteróloga pode provocar uma combinação potente de respostas celular e de anticorpos.
Essa pesquisa, porém, comparou a combinação da segunda dose com participantes que não tinham o esquema vacinal completo.
Mais um estudo publicado na The Lancet, feito com 830 pessoas com 50 anos ou mais, analisou a combinação de vacinas da Pfizer com a Astrazeneca, ou da Astrazeneca com a Pfizer. Os autores afirmam que os resultados apoiam a misturam desses imunizantes, mas também dizem que mais pesquisas são necessárias para avaliar o cruzamento de outras fabricantes.
É seguro misturar vacinas na terceira dose (ou na dose adicional, no caso da Janssen)?
Ainda não há estudos publicados que apontem segurança, geração de resposta imune e eficácia de uma terceira dose de um imunizante diverso do usado nas duas doses iniciais.
Está em curso no Brasil uma pesquisa que observará exatamente isso: dose de reforço (com todos os imunizantes disponíveis no país, ou seja, o do Butantan, da AstraZeneca, da Janssen e da Pfizer) em pessoas que tomaram as duas primeiras doses da Coronavac.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) tem afirmado que faltam evidências científicas sobre segurança e eficácia da terceira dose. A entidade também defende que as vacinas disponíveis sejam distribuídas entre os países mais pobres, em vez de serem aplicadas como dose de reforço nos países ricos.
Por que estamos falando em uma dose de reforço/terceira dose com vacinas combinadas?
Alguns pesquisadores já apontavam para uma possibilidade de, passado um tempo da segunda dose, haver necessidade de atualização na imunização contra a Covid. No momento atual, dois fatores principais levaram à ideia.
O primeiro é a variante delta, considerada mais transmissível do que outras cepas e com escape vacinal -é necessário o esquema vacinal completo para estar protegido contra ela. Com a expansão da variante delta e a minimização das medidas restritivas de contenção do vírus, a cepa se espalhou e causou aumento expressivo de casos e também crescimento de hospitalizações em diversos países com vacinação avançada.
O segundo motivo diz respeito a alguns dados e observações da redução das proteções contra a Covid com o passar do tempo.
Há ainda um outro fator da menor eficácia das vacinas, de modo geral, em populações mais idosas, que estiveram entre as primeiras a receber a imunização e que têm um sistema imune mais frágil.
Um estudo recente -sem revisão por pares- apontou, por exemplo, que, para pessoas com mais de 55 anos que tomaram Coronavac, uma dose extra de imunizante pode ser benéfica.
Dados de vida real da proteção de outras pesquisas também apontam uma eficácia consideravelmente menor da Coronavac em populações com idade mais avançada, como acima de 80 anos.
O que diz a OMS (Organização Mundial da Saúde)?
Na quarta-feira (25), a OMS mais uma vez se posicionou de forma contrária a doses de reforço. A cientista-chefe da entidade, Soumya Swaminathan, diz que uma dose extra de vacina pode ser um desperdício e ainda ser ineficiente. Ela afirma que um painel com cientistas de vários institutos de ponta concluiu que ainda não há evidências suficientes nem sobre a eficácia de uma dose de reforço nem sobre sua segurança.
Ao mesmo tempo, já há consenso de que a imunização completa com duas doses (ou uma, no caso da Janssen) oferece proteção contra adoecimento severo, hospitalização e morte, que são o grande prejuízo desta pandemia, disse Kate O'Brien, diretora de imunização da OMS.
"Sem comprovação científica de que seja necessário o reforço, as vacinas precisam ir para os mais vulneráveis e para médicos e enfermeiros desesperados por proteção nos países mais pobres do mundo", disse a diretora de imunização.
A preocupação da OMS diz respeito à grande concentração de imunizantes contra a Covid em países ricos, enquanto os mais pobres engatinham no processo de vacinação contra a doença.
Já há outros países fazendo uso de doses de vacina combinadas? E doses de reforço?
Sim, alguns países já usam tanto a combinação de doses quanto aplicam as doses de reforço.
O Canadá, por exemplo, desde junho deste ano, passou a recomendar que pessoas tomaram a primeira dose da vacina Covishield contra a Covid-19 recebam, preferencialmente, um imunizante desenvolvido a partir de tecnologia de mRNA (RNA mensageiro), como os da Pfizer/BioNTech e da Moderna.
A recomendação, segundo o Naci (comitê canadense consultivo sobre imunização, em tradução livre), foi baseada em dados que demonstraram uma potencial resposta imune melhor com a mistura de diferentes imunizantes.
Israel, com uma das campanhas de vacinação mais avançadas no mundo, foi um dos primeiros a colocar em prática a dose de reforço, em julho, conforme perceberam o avanço da variante delta mesmo com uma porcentagem elevada da população com esquema vacinal completo. O país, porém não usa combinação de vacinas. A população tem recebido uma dose extra da Pfizer, imunizante que guiou o programa de vacinação naquela nação.
Os dados do país -e alguns estudos- apontam que essas doses extras podem ser uma boa ideia.
E como vai funcionar a dose de reforço no Brasil? Quem poderá tomar?
O ministro da Saúde afirmou que, por enquanto, as doses extras serão destinadas a pessoas acima de 70 anos e imunossuprimidos. Poderão tomar a nova dose idosos que receberam a segunda dose há mais de seis meses.
Para os imunossuprimidos, o intervalo deve ser de 28 dias após terem recebido a segunda dose ou dose única (se foram vacinados com o imunizante da Janssen).
No estado de São Paulo, as datas e idades anunciadas pelo governador João Doria (PSDB) são diferentes. Doria afirmou que, a partir de 6 de setembro, as novas doses serão aplicadas em todos com mais de 60 anos, independentemente do imunizante que tenham recebido nas aplicações anteriores. A dose extra só será aplicada em quem tomou a segunda dose do imunizante há mais de seis meses.
Quem foi vacinado com a Janssen poderá receber a dose de reforço?
Sim. A ideia é incluir todas as pessoas da faixa etária anunciada, ou imunossuprimidos. Nesse caso específico, não se trata de terceira dose, porque o regime original de vacinação da Janssen é com dose única, enquanto as demais vacinas aplicadas no Brasil prevêm duas doses.
Quais combinações já têm estudos específicos?
Até o momento, os dados disponíveis dizem respeito à combinação da Covishield (Oxford/AstraZeneca) e da Pfizer/BioNTech, uma como primeira e outra como segunda dose (em quaqluer ordem).
Quais as vantagens em tomar uma dose de reforço de outra fabricante?
Ainda não está claro, mas alguns estudos feitos pela Universidade de Oxford sugerem que a combinação de primeira dose de Astrazeneca e uma segunda dose da Pfizer pode gerar mais anticorpos e células T (as células imunes que matam os patógenos) do que usar apenas Astrazeneca.
Usar primeiro Pfizer e depois astrazeneca, a proteção também pode ser mais robusta do que usar apenas a Astrazeneca, mas menos robusta do que na outra ordem.
A Alemanha tem recomendado que a vacina Astrazeneca seja combinada com a da Pfizer ou da Moderna. A própria chanceler alemã, Angela Merkel, de 66 anos, recebeu aplicação heteróloga: primeira dose de AstraZeneca e segunda dose da Moderna.
Misturar vacinas é melhor que tomar três doses do mesmo imunizante?
Ainda não está claro. Israel, por exemplo, está usando a mesma vacina, da Pfizer/BioNTech, para a dose de reforço.
Os efeitos adversos são mais fortes ou mais fracos com a combinação de vacinas?
Os dados disponíveis até o momento apontam maior frequência de efeitos adversos, como calafrios, de leves a moderados, com perfil de segurança aceitável.