Gestão da pandemia

Luta de Bolsonaro contra máscara é política e prejudica combate à Covid, dizem especialistas

Ação do presidente esbarra na lei e no STF, mas pode desestimular uso do equipamento de proteção

Sem máscara, Bolsonaro participa de solenidade de passagem do Comando de Operações Especiais do Exército - Isac Nóbrega/PR

A insistência do presidente Jair Bolsonaro em tornar facultativo o uso de máscara -um instrumento de prevenção contra a Covid- esbarra em legislação federal e decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).

Desde o ano passado, uma lei determina a obrigatoriedade do acessório. Além disso, a corte reconheceu a autonomia de estados e municípios na elaboração de normas mais restritivas de combate à doença.

Se as investidas de Bolsonaro avançarem no Ministério da Saúde, a medida poderá ter pouco efeito imediato do ponto de vista jurídico, mas deverá impactar a adesão da população à máscara e afetar o controle da Covid.

A avaliação é feita por especialistas em direito sanitário e gestores de saúde pública ouvidos pela Folha de S.Paulo.



A previsão de que estados e municípios possam ter normas mais rígidas faz com que uma orientação federal contra máscaras "caia em um vazio em termos de eficácia normativa", diz Fernando Aith, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e diretor do Cepedisa (Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário).

"O problema é que a indução de um comportamento [de que o uso de máscara não seria mais necessário] é péssima. Isso tudo é muito deletério para o país e para a contenção da epidemia."

Segundo especialistas, pela Constituição, tanto União quanto estados e municípios podem legislar sobre saúde -avaliação confirmada pelo STF em 2020. Localidades que tiverem normas mais restritivas poderiam mantê-las.

"O que o STF falou é que a competência para legislar [sobre a pandemia] é concorrente. Assim, quando tiver normas da União, estados e municípios que compitam entre si, vale a mais protetora da saúde", diz Aith.

"Todo mundo então pode legislar. Mas, se a União faz uma norma mais restritiva, o estado não pode flexibilizar. E, se [a União] faz uma extremamente flexível, estados e municípios podem fazer normas mais restritivas que protejam melhor a saúde."

Outro ponto é que existe a lei 14.019, que determina a obrigatoriedade do uso de máscara em locais públicos, como estabelecimentos comerciais, escolas e igrejas. O texto teve vários trechos vetados por Bolsonaro, mas recuperados pelo Congresso.

Segundo o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado, para ter efeito jurídico com uma flexibilização, o governo teria de propor ao Congresso mudanças na lei. Mesmo assim, não seria possível impedir estados e municípios de exigirem a obrigatoriedade da máscara.

"O efeito jurídico é o que menos importa. Bolsonaro quer é criar confusão, e uma medida dessas certamente faria muita gente deixar de usar, independentemente do que houver de norma estadual e municipal."
Aith concorda com a avaliação. "Para Bolsonaro, pouco importa [se outras normas continuam valendo], mas [importa] o uso político."

Na segunda-feira (23), o presidente disse que iria cobrar novamente do ministro Marcelo Queiroga (Saúde) uma data uma data para que o uso de máscara deixe de ser obrigatório.

"A ideia é a seguinte: pela quantidade de vacinados, pelo número de pessoas que contraiu o vírus, nós tornarmos facultativo, orientarmos que o uso da máscara não precisa ser mais obrigatório. Essa nossa ideia talvez ganhe uma data a partir de hoje", disse Bolsonaro em entrevista a uma rádio paulista.

A declaração vai na contramão da recomendação de infectologistas, que lembram que o uso de máscara ainda é necessário mesmo entre vacinados e entre quem já teve Covid, pelo risco de reinfecção. Ainda assim,
Queiroga disse que deverá fazer uma reunião para apresentar resultado de estudos prévios sobre o tema.

Questionado sobre o tema em evento nesta quarta (25), o ministro disse que uma avaliação sobre o fim da necessidade do uso de máscaras "depende do cenário epidemiológico e do número de pessoas vacinadas". Ele evitou, porém, dar uma previsão de quando isso pode ocorrer.

"Em um primeiro momento, pode ser desobrigado o uso em ambientes abertos. Em um segundo, essa flexibilização pode acontecer em ambientes fechados. Mas a variante delta é um alerta. Outros países já liberaram o uso de máscara quando avançaram na vacinação e hoje com delta reduziram essa flexibilização.
Então vamos trabalhar não só para dar as respostas que o presidente solicita, mas sobretudo para tomar condutas que sejam seguras", afirmou.

Em meio à nova investida do presidente, representantes do Conass -conselho dos secretários estaduais de Saúde -pretendem debater a questão em reunião entre os gestores. Para Carlos Lula, secretário de Saúde do Maranhão e presidente do órgão, Bolsonaro tenta "criar confusão".

"O que ele quer, no fim das contas, é pressionar estados e municípios porque sabe que a sociedade está no limite", diz. "As pessoas vão dizer 'ah, mas tem a norma do presidente que [diz que] não precisa usar máscara', ao passo que vai ter estado e município que continuarão exigindo."

Nésio Fernandes, secretário de Saúde do Espírito Santo, concorda. "[Retirar as máscaras] seria catastrófico para a gestão da pandemia e para o SUS", afirma. "É mais uma cortina de fumaça e um constrangimento que o presidente coloca ao ministro da Saúde", diz Fernandes, que cita preocupação com o avanço da variante delta.

Para o infectologista e pediatra Renato Kfouri, da Sbim (Sociedade Brasileira de Imunizações), não há como estimar uma data para que o acessório seja dispensável. "Isso cria expectativas que podem não ser concretizadas."

De acordo com ele, o cenário ainda é desafiador para o Brasil no combate à Covid.

"Temos vencido algumas batalhas, mas vivemos ainda em uma combinação perigosa: uma variante entrando no país com mais transmissibilidade, um número não ideal de vacinados com duas doses e a população cansada e estimulada por autoridades a abandonar as medidas [de prevenção]."

A proposta de Bolsonaro, na avaliação de Kfouri, é inadmissível, mesmo com o avanço da vacinação –ponto alegado pelo presidente para defender o fim da obrigatoriedade.

"A vacinação acaba levando à redução da circulação do vírus, mas não é suficiente para prevenir a transmissão."