Com evasão escolar e desigualdade social, educação para autonomia do aluno é desafio no Brasil
Em reportagem especial, especialistas, como a filósofa Viviane Mosé, refletem sobre as mudanças no processo de aprendizagem diante da transformação digital.
“O ato de cozinhar [...] supõe alguns saberes concernentes ao uso do fogão, como acendê-lo, como equilibrar para mais, para menos, a chama, como lidar com certos riscos mesmo remotos de incêndio, como harmonizar os diferentes temperos numa síntese gostosa e atraente. A prática de cozinhar vai preparando o novato, ratificando alguns daqueles saberes, retificando outros, e vai possibilitando que ele vire cozinheiro”.
A citação vem das primeiras páginas de “Pedagogia da Autonomia”, a última obra do educador e filósofo Paulo Freire (1921-1997), lançada por ele um ano antes de morrer. É a partir desse exemplo simples sobre o ato de cozinhar e a formação do cozinheiro que o intelectual pernambucano leva o leitor à constatação norteadora do livro:
“A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blablablá e a prática, ativismo. [...] ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”.
Ideias para hoje
Quase 30 anos depois de divulgadas, as ideias de Freire ainda lançam um desafio aos pais, professores e gestores de todo o País. Como oferecer ao estudante uma formação que o faça se desenvolver como um sujeito autônomo, consciente das próprias escolhas e que saiba se colocar na diversidade de um mundo cada vez mais complexo?
Embora pareça óbvio que esse deve ser o objetivo principal de todos que trabalham com a educação, o contexto histórico, político e estrutural que permeia a realidade brasileira nem sempre é favorável.
Essas reflexões têm ainda mais relevância nos tempos de hoje, em que a evolução das tecnologias digitais modifica o cotidiano de maneira radical e acelerada. Atrair a atenção da criança e mantê-la motivada nas aulas, em meio a tantos estímulos disponíveis nas telas que as ligam à internet, exige agora uma postura diferente do que o ensino tradicional sempre praticou.
“Você não pode mais educar alguém pelo conteúdo. Você tem que educar ensinando a pessoa para aprender a aprender”, defende a psicóloga e filósofa Viviane Mosé, que esteve no Recife esta semana para uma palestra sobre o tema no Colégio Salesiano, na Boa Vista, Centro.
Aprender a aprender
Para a pensadora, “aprender a aprender” significa viver como um pesquisador, que age de forma crítica, questionando, estabelecendo relações e sabendo filtrar as informações que recebe.
“Educar para a autonomia é produzir pesquisadores desde a Educação Infantil. É produzir pessoas com curiosidade, que saibam elaborar projetos de pesquisa no dia a dia”, argumenta. “Desenvolver-se de modo autônomo é não se submeter à máquina cruel do lucro. Hoje nós não fazemos escolhas, apenas repetimos o preestabelecido. Há um grande fluxo que leva todo mundo ao mesmo lugar, que gera suicídio, depressão e automutilação. Se quisermos sair desse diagnóstico, temos que educar pela autonomia”.
Para que isso aconteça, na visão da filósofa, o processo de transformação educacional precisa levar em conta a diversidade da população e prezar pelo respeito às diferenças.
“Um país diverso como o Brasil merece uma educação diversa. E o que é isso? É a que valoriza o projeto de pesquisa de cada aluno, sua trajetória e seu desenvolvimento da capacidade intelectual, porque o conteúdo quem vai preencher é você. A escola do futuro vai ajudar o aluno a formatar o conteúdo que ele já tem”, observa.
Sala de aula invertida
Nessa quebra de paradigmas que visa dar protagonismo ao estudante na construção do conhecimento, o próprio papel do educador é repensado. Professora de Didática no Ensino Superior dos programas de Pós-Graduação da Faculdade Frassinetti do Recife (Fafire), Lourdes Cavalcante propõe o ensino como um trabalho de mediação do processo de aprendizagem.
“Eu deixo de ser a transmissora para ser a mediadora. E, se eu vou ser a mediadora, tenho que entender que meus alunos são possuidores de conhecimentos, sentimentos e experiências, que devem ser considerados”, analisa.
Para possibilitar isso, podem ser utilizadas técnicas que estimulem a participação do aluno, como, por exemplo, a sala de aula invertida.
“Nela, eu proponho um determinado assunto a ser trabalhado, mando antes um texto para o estudante ler e elaborar perguntas, disponibilizo um vídeo que aborda a questão ou posso até pedir para você produzir um vídeo”, explica. “A partir daí, se abre um debate e compete ao professor, a partir das suas dúvidas e das suas colocações, aprofundar a questão. E o aluno assume a postura de construtor do conhecimento”.
O papel do professor
Na avaliação da educadora, que há mais de 20 anos coordena estágios de docência, uma das principais barreiras para a implantação de uma educação voltada para a autonomia está na formação dos professores.
“Desde que existe escola no Brasil, nós temos um paradigma que orienta a prática docente segundo a pedagogia tradicional”, observa. “O grande desafio agora é formar professores com a metodologia que parte do que eles já sabem para que, ao assumirem a sala de aula, isso integre a prática deles. Não existe ação educativa sem orientação, mas uma coisa é orientar, outra é assumir o lugar do aluno no seu próprio processo de desenvolvimento”.
Por essa perspectiva, a filósofa Viviane Mosé argumenta que, mais do que nunca, o professor se mostra uma figura fundamental.
“Antes eu decorava o assunto, dava a aula e o aluno perguntava sobre o que eu dei. Agora, o aluno está no mundo e vai trazer perguntas que eu não tenho ideia do que são. Então, o papel do professor é mais difícil e necessário. Quanto mais os alunos estão na rede, mais importante é ter alguém que os oriente, não apenas para qualificar o conteúdo, mas para valores, para a ética”, diz.
Realidade distante
Embora o campo acadêmico já discuta esses conceitos há anos, as estatísticas revelam uma realidade ainda distante de vê-las na prática, com muitas crianças e adolescentes sem encontrar estímulos para permanecer nos estudos, principalmente nas áreas vitimadas pela histórica desigualdade social brasileira.
Dados da Plataforma Juventude, Educação e Trabalho, da Fundação Roberto Marinho, mostram o País com uma taxa de 7,1% de jovens entre 15 e 17 anos fora da escola, sem ter concluído o ciclo básico. Em Pernambuco, o índice é de 8%, um pouco abaixo da média da região Nordeste, de 8,7%.
O levantamento foi feito em 2019, antes da pandemia. Mas já há uma percepção de que, com o fechamento das escolas, o agravamento da crise econômica e a falta de acesso à internet de qualidade para as aulas remotas, a evasão subiu no ano passado, como alerta o estudo “Enfrentamento da cultura do fracasso escolar”, divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil em janeiro de 2021.
Outro indicador que chamou atenção para o problema se deu na realização do Enem 2020, que obteve a maior taxa de abstenção desde a criação do exame, em 2008. Foram 55,3% de candidatos faltosos em todo o País, enquanto, no Estado, a proporção foi de 52,2%.
No meio desse contexto, o cenário político se mantém em alta tensão, por meio de declarações que revelam, na gestão pública federal, uma visão conflitante com os debates promovidos pelos educadores. Em um único dia, foram duas do ministro da Educação, Milton Ribeiro, que repercutiram nas semanas seguintes.
Em entrevista à TV Brasil, em 9 de agosto, ao defender o investimento em instituições de ensino técnico, o gestor chegou a afirmar que “universidade, na verdade, deveria ser para poucos, nesse sentido de ser útil à sociedade”.
No mesmo programa, ele disse que a inclusão de alunos com deficiência “atrapalha” o desempenho da turma em geral. Diante da repercussão, o ministro ainda tentou se explicar, dizendo que 12% de 1,3 milhão de crianças matriculadas nas escolas públicas têm um grau de deficiência de “impossível convivência”.
Estímulos contra a evasão
As falas de Ribeiro foram bastante criticadas por especialistas e movimentos ligados à educação, que veem no Governo uma visão dissonante do que se espera de um ensino inclusivo e participativo.
No país onde a evasão e a falta de acesso à escola se mantêm como entraves para o desenvolvimento humano e sustentável, declarações como essas refletem a ausência de um Estado atuante, que execute as políticas públicas necessárias para garantir a todas as crianças um direito básico previsto pela Constituição.
O secretário-executivo de Gestão da Rede da Secretaria Estadual de Educação (SEE-PE), João Charamba, diz que, em Pernambuco, hoje, apenas 1,2% dos estudantes matriculados na rede pública de ensino saem da escola antes do tempo previsto, o que, de acordo com ele, corresponde à menor taxa de evasão escolar entre os estados brasileiros.
Sobre os dados da Fundação Roberto Marinho, que considera o total da população de jovens sem matrícula, o gestor afirma que a pasta estuda medidas para atrair esse público.
“Nós estamos ampliando o nosso trabalho de busca ativa. Uma das estratégias montadas é fazer isso na nossa rede, com uma monitoria formada por alunos e ex-alunos, que vão nos ajudar nesse processo [de resgatar essa juventude fora da escola]. Outro projeto, ainda em estudo, é uma espécie de bolsa, com uma ajuda de custo”, explica. O valor do benefício não foi definido, e o programa está sendo avaliado pela secretaria. “Estamos vendo o público que deve ser atingido, o perfil do candidato”, adianta.
O secretário-executivo comenta ainda que falta apoio do Governo Federal. “Essas falas do ministro são de alguém que está sentado numa cadeira e não tem conhecimento da rede que gestiona. Hoje nós temos uma descoordenação do Ministério da Educação junto a nós, secretários estaduais. E não temos diálogo no MEC, inclusive em relação a propostas para a educação inclusiva”, avalia Charamba.
Inclusão e desenvolvimento
Ao contrário do que sugerem as declarações do ministro, a inclusão das crianças com deficiência melhora o ambiente escolar e ajuda no desenvolvimento delas. Moradora da Muribequinha, em Jaboatão, no Grande Recife, Germanny Maia, 31 anos, sabe bem disso.
A filha dela, Giovanna, 5, tem microcefalia e nasceu na época da explosão de casos provocados pelo vírus da Zika, em 2015. Desde muito cedo, a menina vai à escola e tem uma vida social intensa, com colegas, vizinhos e amigos da mesma idade.
Aluna de uma turma de Infantil 5 em uma escola municipal, Giovanna só deixou de frequentar a unidade na pandemia, mas, segundo a mãe, não vê a hora de voltar, prevista para setembro.
“Ela sente muita falta. Pega os cadernos, brinca de escolinha aqui com as vizinhas do prédio”, diz Germanny. “Como ela só sabe engatinhar, vai de cadeira de rodas, e as crianças perguntam, simpatizam, brincam, conversam, engatinham junto com ela. Por onde passa, ela ensina as pessoas. E essa convivência trabalha também a comunicação. A dicção dela melhorou muito depois da escola”.
Presidente da Aliança de Mães e Famílias Raras (Amar), organização pernambucana que oferece assistência a pessoas com deficiência, Pollyana Dias classificou a fala do ministro como “irresponsável”.
“Acredito que, nesses 12%, ele colocou as pessoas com deficiência intelectual e incita a negativa de professores de se capacitarem para atender essas crianças. É como se pegasse todo o movimento de luta pela inclusão e jogasse no lixo. Mas ele não entende o que está falando ou finge não ver. É preocupante”, considera.
A reportagem procurou o Ministério da Educação para falar sobre as críticas às declarações do titular da pasta, mas, até a publicação da matéria, não obteve retorno.