Brasil concede visto humanitário a afegãos que fogem do Talibã
O refúgio é uma proteção legal para pessoas que migram devido a perseguição relacionada a raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política
O governo brasileiro vai conceder visto humanitário a pessoas do Afeganistão que fogem do país novamente governado pelo grupo fundamentalista Talibã. A medida facilita a acolhida de pessoas dessa nacionalidade, nos mesmos moldes que já ocorre em relação a sírios e haitianos.
Mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência e seus grupos familiares terão prioridade. As embaixadas em Islamabad, Teerã, Moscou, Ancara, Doha e Abu Dhabi estarão habilitadas a processar os pedidos desse tipo de visto –o Brasil não possui representação diplomática no Afeganistão.
A decisão foi tomada após reunião do presidente Jair Bolsonaro com os ministros das Relações Exteriores e da Justiça na quinta-feira (2). Na noite desta sexta (3), as pastas oficializaram a portaria em uma nota conjunta sobre o tema.
O refúgio é uma proteção legal para pessoas que migram devido a perseguição relacionada a raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política. Em dezembro de 2020, o Brasil reconheceu a situação de "grave e generalizada violação de direitos humanos" no Afeganistão, algo que agiliza o processo de obtenção de refúgio por cidadãos desse país.
Só é possível pedir o refúgio, porém, estando já no Brasil, e, para a viagem, os afegãos precisam de visto. Até agora, era preciso pleitear o documento de turismo ou o destinado a reunião familiar, mais difíceis de serem obtidos, especialmente para quem sai às pressas de uma situação de crise humanitária.
Os afegãos ainda precisam cumprir certos requisitos e apresentar documentos a alguma embaixada brasileira –como não há representação diplomática em Cabul, geralmente isso é feito em países vizinhos, como o Paquistão. O visto humanitário reduz a burocracia e facilita esse trâmite.
Atualmente, são poucos os refugiados afegãos em território brasileiro: no total, há 162 já reconhecidos e 49 processos em andamento, segundo dados recentes do Ministério da Justiça. Mas, com o aumento no número de pessoas que saem do país após o Talibã ter tomado o controle, o Brasil pode ser uma opção para algumas delas, especialmente às que já têm familiares ou conhecidos por aqui.
Uma série de setores se mobilizaram para pedir que o governo federal concedesse visto humanitário aos afegãos em fuga.
Associações brasileiras de magistrados e magistradas, por exemplo, fizeram um apelo pela acolhida a juízas afegãs juradas de morte pelos talibãs. A Associação Internacional de Mulheres Juízas (IAWJ, na sigla em inglês) pedira para que a comunidade internacional acolhesse dezenas de profissionais que condenaram combatentes do Talibã e agora estão ameaçadas.
Outra proposta de resgate foi apresentada pela empresa de logística baseada em Dubai FGI Solution, que atuou na retirada de pessoas de Cabul quando o aeroporto ainda estava aberto.
A companhia afegã pediu ao Itamaraty, no dia 22 de agosto, que aceite temporariamente 400 pessoas. São funcionários da empresa, tradutores, jornalistas, ativistas de grupos de mulheres e outros profissionais que trabalharam para o governo americano e, por isso, correm especial risco.
Segundo a FGI, esses afegãos têm direito a pedir asilo nos EUA, mas precisam da acolhida temporária de um terceiro país enquanto seu pedido de visto americano é processado. A empresa se ofereceu para custear a estadia deles no Brasil.
O México foi um dos países que aceitaram a solicitação dessa empresa para receber outras centenas de afegãos, mas a companhia afirma que a quantidade de vagas não é suficiente para a demanda.
"Estamos muito felizes que finalmente o governo brasileiro decidiu por conceder a possibilidade de visto de acolhida humanitária aos afegãos", disse a advogada especializada em migração Natália Cintra, uma das consultoras da FGI para o caso brasileiro.
Segundo ela, a opção pelo visto humanitário foi a mais adequada. "É uma decisão acertada e plural, pois os efeitos irão beneficiar centenas de afegãos em risco, possibilitando o trânsito regular ao Brasil, o que pode tornar esse trajeto mais seguro, proteger e salvar vidas."
Juízas escondidas em buracos
A Associação Internacional de Mulheres Juízas informou que 270 mulheres atuavam como magistradas no Afeganistão. Ainda não se sabe quantas viriam para o Brasil.
"Não sabemos quantas já saíram, quantas ainda restam. Essas listas são sigilosas e mudam a cada momento. As que ficaram poderão ser encaminhadas para os países que aceitem acolhê-las", diz Renata Gil, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Segundo reportagem do jornal americano The Washingon Post, 20 delas conseguiram escapar quando ainda havia voos operando em Cabul e foram levadas para países europeus, após a IAWJ conseguir vistos para elas e suas famílias.
A maioria, porém, continua em risco, mudando de uma casa para outra ou até escondidas em buracos tampados, com dificuldade de acesso a alimentos, conta a juíza brasileira Amini Haddad, integrante da IAWJ. Em sua ofensiva para retomar o poder, Talibã abriu as portas de prisões de cada cidade conquistada, libertando seus combatentes e outros criminosos; muitos iam atrás de quem os condenou para se vingarem.
"Qualquer um que não concorde com a dinâmica do Talibã está sob risco. Mas essas juízas estão sendo realmente caçadas. Não é um risco percentual, é certa a morte [caso sejam encontradas]", diz Haddad. "Não podemos abandonar essas mulheres que apenas cumpriram a missão delas."
Segundo ela, por razões de segurança a forma como ocorrerá o resgate dessas magistradas e suas famílias não será revelada, mas a estratégia está sendo planejada junto com outras nações e organismos internacionais. O aeroporto internacional de Cabul ainda está sem operar –uma equipe do Qatar auxilia o Talibã a restabelecer o terminal– e as fronteiras terrestres estão fechadas.
Os alertas para o risco corrido por essas profissionais já vinham desde antes de as tropas americanas deixarem o país e cresceram após o assassinato de duas juízas do Supremo Tribunal afegão em um ataque em janeiro deste ano, conta Maria Elizabeth Rocha, ministra do Superior Tribunal Militar (STM). Na época, o então presidente Ashraf Ghani culpou o Talibã, que negou o atentado.
"O Brasil tem tradição de acolhida humanitária, de acolher perseguidos de guerra. Somos signatários de vários tratados internacionais de direitos humanos. É hora de mostrar que eles têm força. Para nós, essa troca cultural é muito rica", diz Rocha, que também se envolveu nos esforços para o visto brasileiro às afegãs.
Na terça (31), o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, enviou um ofício ao chanceler Carlos França declarando que essas afegãs poderiam trabalhar em um programa do Conselho Nacional de Justiça.